Para além da corrida
Ronaldo Junior - Atualizado em 18/06/2022 01:09
Fonte: Pixabay
 
Não bastando as necessidades prementes, ele precisava pensar constantemente na pressa com que se deslocaria de um ponto ao outro da cidade enquanto seu celular se alimentava com energia do próprio carro.

O passageiro entrava, saía quilômetros depois para outro entrar em seguida, numa lógica produtiva que fazia das ruas esteira de produção – sendo o carro e o motorista os produtos movimentados por todo o processo.

Na lógica devastadora de necessitar e suprir, o motor do carro grunhia ruidosamente, como a dizer que não suportava toda aquela rotina, mas aceitando maquinalmente o fato de ter que funcionar por tantas horas seguidas. O motorista, porém, sequer podia cogitar seus próprios limites.

Uma virada de chave era capaz de acionar todo um sistema de engrenagens e eixos – qual a necessidade, a despertar sentimentos primitivos nos seres humanos.

Na predatória sensação de aceitar uma corrida atrás da outra, o homem produz dinheiro enquanto queima combustível, enquanto dilapida seu tempo para garantir que sobreviverá por algum tempo mais.

Os pensamentos, se não ignorados na jornada de doze horas, consumiriam o cérebro a ponto de o homem não conseguir percorrer as rotas. Isso porque algo diferia o homem da máquina: enquanto o motor era capaz de queimar questionamentos junto com os combustíveis, o motorista não dispunha de tal estrutura, restando a ele calar.

Num sistema de lucros que se abastece com a necessidade, o homem crê estar trabalhando autonomamente enquanto se explora em nome do lucro de um terceiro, que, por sua vez, cisma em chamar seus empregados de autônomos, numa lógica empreendedora que cria a autoexploração sem que nenhum patrão precise cobrar.

A contemporaneidade extorque o tempo do homem para extrair lucro, fazendo de cada curva, de cada toque do celular, um traço das relações exploratórias que se calam na impossibilidade de fechar os olhos à noite – enquanto a máquina permanece a produzir necessidades.


*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.