Onde fica o lugar do que não deveria acontecer a ninguém, acontece?
Edmundo Siqueira 05/04/2023 21:30 - Atualizado em 05/04/2023 21:32
Onde fica a definição de algo indefinível? Onde fica o lugar do que não deveria acontecer a ninguém, acontece? Podemos tentar arrumar culpados quando uma atrocidade é cometida; mas além de inócua, é uma forma de consternação, de aceitação ou de compensação. Em casos mais graves, de complacência covarde.

Não podemos negar — ou neguemos caso não queiramos aceitar que temos um problema sério — que alguém que comete um crime, por mais odioso que seja, saiu da mesma sociedade que criamos. A cabeça estragada do sujeito dificilmente assim nasceu. As sinapses e outras construções mentais foram sendo produzidas através de uma realidade perversa, odienta, de afastamento emocional e de esvaziamento educacional e cultural.
Podemos chamar o problema de desigualdade, mas essa definição ainda não vai explicar tudo. Nem sempre alguém capaz de uma monstruosidade vem de uma realidade miserável.

Três meninos e uma menina, entre 5 e 7 anos, morreram em uma creche na manhã de hoje, 5 de abril, em Blumenau, Santa Catarina. Foram atingidas por golpes de machado, vindas de um homem de 25 anos que invadiu a escola. Ainda não se sabe o motivo de um ato de tamanha crueldade; e talvez nunca saberemos, pois são muitos.
“Nada justifica”. É verdade, mas quando afirmamos que algo vem do “nada” estamos apenas aceitando o fato de que não podemos dizer de onde ele vem. É o lugar que não deveria existir. A dor que não deveria ser sentida. A atrocidade que não deveria acontecer. É o nada, mas ao mesmo tempo, é uma enormidade de coisas que não existem; mesmo existindo.

Jean-Paul Sartre, filósofo francês, escreveu uma peça em 1944 que contava a história de três pessoas mortas condenadas a passar a eternidade confinadas em um mesmo quarto. Uma se torna carrasco da outra em uma convivência destrutiva. Uma das personagens cênicas diz uma frase que viria a ficar imortalizada pela obra sartriana: “o inferno são os outros”.

É preciso arranjar culpados para que rapidamente nos distanciamos dos monstros. Embora eles existam e sejam uma minoria, quando agem afetam a todos, sem distinção. Devem ser punidos, linchados, condenados à morte por tribunais populares. Muito compreensível. Eliminá-los, porém, não determina que outros — outros infernos — deixem de existir. E quando irrefutavelmente podemos dizer que é aquele o monstro, temos a falsa ilusão de que estamos livres do enxofre, do fétido, das trevas. Mas sempre estaremos fadados à desilusão.

Nos resta a angústia de tentar encontrar caminhos, de saber onde erramos enquanto sociedade, de procurar entender o que leva alguém ao impensável, ao abominável. Aglomerações humanas, físicas ou virtuais, alimentadas pelo ódio e ressentimento, invariavelmente provocam gatilhos em cabeças estragadas, e formam a monstruosidade.
Não há culpados diretos para além dos executores, mas há, sim, os que incentivam. Há sim os que desejam uma sociedade cindida, que criam inimigos imaginários, que negam formas evidentemente científicas de salvar vidas, que cultuam a morte, que pregam a violência, que adoram armas, que buscam o conflito constante. Há os que lucram com o inimaginável, pois concorrem para que se materializem.

Três meninos e uma menina, entre 5 e 7 anos. Onde fica o lugar do que não deveria acontecer a ninguém, acontece?
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