Neoliberalismo - Como Morre um Conceito?
05/04/2020 17:29 - Atualizado em 05/04/2020 17:30
Neoliberalismo. Provavelmente o leitor já ouviu ou leu essa palavra por aí, principalmente durante um comentário, debate ou análise de natureza política.
Funciona quase que como uma senha para crítica ao capitalismo, ao pensamento liberal, ou mesmo para demonstrar pertencimento ao espectro político de esquerda. É usada como uma palavra coringa, cujo significado importa menos que o estigma que carrega. Sinaliza virtude a quem profere, e superioridade moral.
Se amolda a qualquer contexto, e tem o poder de concentrar em si referências das mais abstratas e diversas. Se você é chamado de neoliberal, isto pode significar alguma coisa envolvendo odiar pobres andando de avião, querer matar pessoas de fome, apoiar Augusto Pinochet, e ser um milionário ganancioso ou sua marionete.
Qualquer assunto que subitamente se torne de grande atenção mundial ou nacional pode dar ensejo ao uso do termo para algum tipo de "análise", seja o Coronavírus ou o Big Brother Brasil:
Busca Google
Busca Google / Internet
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ele pode estar em lugares tão distintos como um trabalho acadêmico sobre urbanismo, ou no discurso de uma chapa para candidatura de DCE. Mas será que um conceito, cujo propósito inicial é ser uma ferramenta analítica, não perde completamente o sentido por possuir tantos significados simultâneos, de forma tão indefinida e incoerente, e principalmente pelo uso exclusivo por parte de um grupo político tão homogêneo?
Este que vos escreve sempre achou estranho o uso de uma palavra que, etimologicamente, serve muitíssimo bem para definir seu próprio pensamento político, um "novo" liberalismo. Por este motivo, no ano de 2018, numa semana onde o termo Neoliberalismo re repetiu bastante, tentou identificar na literatura científica qual era realmente a definição de Neoliberalismo.
O resultado foi o texto que ora se reproduz:
"Por algumas semanas estive fora do Facebook, e há algum tempo não escrevo nada, mas duas situações que aconteceram comigo recentemente me fizeram refletir e escrever de novo.
A primeira delas foi a organização, por parte do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFF, de um evento chamado "O acesso à moradia no Brasil e o agravante do neoliberalismo". São dois assuntos que me interessam profundamente, urbanismo e neoliberalismo, ainda assim, me vi absolutamente indisposto de ir até o evento, e me perguntei o porquê.
Dias depois, o jornalista Pedro Dória fez um post em sua página onde falava de abertura comercial, no que eu brinquei chamando-o de neoliberal, e a resposta fora rápida: Não me associe ao termo.
O que há de comum na situação é o enorme desconforto gerado com o uso da palavra "neoliberal", seja quando alguém usa para dar um tom pejorativo, como no evento do CAEV, seja quando alguém se defende do termo, por reconhecer nele a pejoratividade, mesmo que tenha sido utilizado de forma neutra, ou até mesmo elogiosa, como no post do Pedro.
Ocorre que eu, particularmente, sempre achei estranha esta carga ao conceito de neoliberalismo, porque etimologicamente é um excelente termo para definir meu próprio pensamento, que em meu juízo, obviamente, não é nem radical, nem "do mal", como usualmente se julga aquilo que é neoliberal.
Bom, durante o post do Pedro eu fiz uma rápida pesquisa no google para tentar entender o que diabos é neoliberalismo, esse conceito que todos parecem entender, mas ninguém sabe muito explicar. A princípio, o melhor material que encontrei foi uma matéria da The Economist, e um paper do Milton Friedman chamado "Neoliberalism and Its Prospects", tendo este último - e também o primeiro de certa forma - dado uma definição de neoliberalismo que muito se assemelha ao "social liberalismo", ou ao liberalismo cujas convicções se amoldaram às evidências científicas modernas, bem como à síntese humanista.
Inclusive, em excelente conversa com amigos na faculdade, mostrei esta definição a um amigo, eleitor do Ciro, com enormes ressalvas ao pensamento pró-mercado, e este se surpreendeu em como aquela definição poderia, sem maiores problemas, defini-lo.
Foi então que hoje, em mais um post onde vi o conceito ser utilizado como sinônimo de "tudo que há de mal", resolvi levar a sério a pesquisa sobre ele. E, graças ao glorioso google acadêmico, encontrei o que provavelmente é um dos melhores materiais científicos sobre o tema: O paper intitulado "Neoliberalism: From New Liberal Philosophy to Anti-Liberal Slogan", dos autores Thaylor C. Boas e Jordans Gans-Morse, ambos do Departamento de Ciência Política de Berkeley, Universidade da Califórnia, que dispensa mais apresentações.
Ai você pode me perguntar: "Mas por que, Marco, este paper é um dos melhores? Porque ele é útil para o seu ponto?"
Bom, sim, ele é útil ao meu argumento, mas não se trata (apenas) disso. O artigo tem rigorosa metodologia, equidistância do seu objeto adequada, e robusta investigação empírica. Os autores analisaram detalhadamente 184 artigos científicos, publicados em 9 das mais conceituadas revistas científicas de Ciência Política do mundo*, no período de 1990 até 2005.
Mais artigos foram analisados, estes desde 1980, para identificar a frequência do uso do termo nas publicações. Todos os artigos analisados foram submetidos ao método de revisão por pares (peer review), que basicamente é um filtro de qualidade onde os artigos são revisados por outros acadêmicos da mesma área antes de serem publicados.
E o que este rigoroso e belíssimo estudou identificou? Bom, primeiro vamos aos dados:
1) O termo neoliberalismo teve um crescimento vertiginoso em seu uso na Academia, sendo citado em quase nenhum artigo em 1995, subindo para mais de 1.000 artigos anualmente entre 2002 e 2005.
2) Dos 184 artigos detalhadamente analisados, 4% mencionam o termo positivamente, 45% negativamente, 45% de forma neutra e 8% de forma mista
3) De todos os artigos, 69% não definem o conceito de neoliberalismo. E vem piorando, no período de 2002 a 2004, 76% dos artigos não definem o conceito.
4) Neoliberalismo vem sendo utilizado para se referir aos mais diferentes fenômenos, sendo em 72% dos casos referente à políticas públicas, 39% modelo de desenvolvimento, 22% ideologia, 14% paradigma acadêmico.
O artigo segue fazendo uma brilhante análise, inclusive na genealogia do conceito, que nasceu para definir um liberalismo mais ponderado que o do século XIX, e terminou vinculado - ao menos e sobretudo na América Latina - ao radicalismo de Augusto Pinochet.
A conclusão deste brilhante estudo explica o porquê eu não fui à palestra do CAEV, e também porque o Pedro se defendeu do adjetivo neoliberal:
Em tradução livre - "O uso acadêmico do neoliberalismo (conceito) é problemático de diferentes formas. Seu significado não é debatido, e por muitas vezes sequer definido. Como resultado, não nos deparamos com muitas definições de neoliberalismo, e sim com muito poucas. O termo ainda é utilizado de forma assimétrica e desequilibrada no espectro político raramente aparecendo entre acadêmicos favoráveis ao livre mercado".
Este último trecho é sintomático, já que para que um conceito se mantenha vivo sem que o debate morra, é imprescindível que tenha defensores e críticos, pois se apenas detratores houverem, então o significado do conceito se torna a própria crítica, perdendo completamente sua função orginal, passando a ser utilizado como slogan e propaganda, ao invés de instrumento analítico.
A conclusão dos autores, depois de refletirem as circunstâncias históricas que levaram o uso de neoliberalismo de um sinônimo de liberalismo moderado para algo radical e autoritário, inferindo a falta de debate como um dos causadores dessa mudança brusca, continua afirmando:
"[...] Se o (conceito) de neoliberalismo deve ter um valor mais analítico que retórico para cientistas políticos, este deve retomar um robusto significado comum, retornando às suas raízes etimológicas e entendido como uma noção concreta de "novo liberalismo".
Eles, então, reforçam que o termo nasceu cunhado (pela German Freiburg School) como uma nova forma de liberalismo que rejeita o dogma "laissez-fare" e assume uma ênfase humanística.
Por todo o exposto, fica claro o motivo da rejeição que me causa qualquer evento, sobretudo na Academia Latino-Americana, que use a palavra Neoliberalismo no título: Será sempre a estigmatização do que eu entendo por moderado e humanista, como radical e autoritário."
* Third World Quarterly; Studies in Comparative International Development; World Development; Latin American Research Review; Latin American Politics and Society; Journal of Latin American Studies; Comparative Politics; Comparative Political Studies; World Politics

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Marco Alexandre Gonçalves

    [email protected]