Políticas públicas baseadas em evidências. Estas cinco palavras são a melhor síntese daquilo que acredito ser o norte de todos que de alguma forma vierem a se debruçar sobre a coisa pública.
Especificamente no campo orçamentário, é conclusão necessária de qualquer análise, a qualquer nível federativo, em qualquer poder da República, que "folha de pagamento" representa o maior gasto público, cuja expansão resulta na asfixia de outros gastos, como despesas de capital (investimentos, obras, infraestrutura), e mesmo outras despesas correntes, principalmente assistência social.
Tal estados de coisas é especialmente grave durante uma pandemia, que acentua a escassez de recursos. A eficiência em sua alocação ganha especial valor, e se torna decisiva para evitar desastres e garantir o progresso social.
Nos orçamentos das Universidades Públicas não é diferente. Hoje, todas elas - acertadamente - suspenderam as atividades presenciais, mostrando grande responsabilidade e o valor da autonomia universitária.
Polêmica maior, no entanto, é gerada pela decisão predominante de manter as atividades de graduação e ensino suspensas. O ensino mediado por tecnologias remotas gera calorosos debates, e o padrão nas Universidades Públicas tem sido um debate mais emocional que racional, muito pautado pelas corporações, e caracterizado pela interdição da discussão que se propõe.
É importante vencer este tabu e trazer a evidência científica e os dados para o centro da discussão, afastando as paixões e os interesses de classe tanto quanto for possível.
Um estudo publicado por uma empresa americana de consultoria chamada Mckinsey & Company demonstrou que simplesmente suspender a educação formal indefinidamente tem um potencial, nos Estados Unidos da América, de aumentar gravemente a desigualdade social daquele país.
O estudo considera três cenários i) suspensão do ensino; ii) ensino remoto de qualidade média, iii) ensino remoto de baixa qualidade. O resultado é o intuitivo, sendo os alunos do primeiro cenário os que obtém progresso de aprendizagem, os do segundo cenário mantém a estagnação, e os do terceiro regridem. A pesquisa é muito bem comentada em português neste artigo da plataforma medium, onde também há o link para sua íntegra em inglês.
Ao que tudo indica, os efeitos de aumento da desigualdade, sobretudo considerando a continuidade das aulas em instituições como PUC, IBMEC, FGV e cia, num país extremamente desigual como o nosso, será também devastador por aqui, mantidas as condições de temperatura e pressão.
O principal argumento sério contrário à implementação do ensino remoto, deixando um pouco de lado os jargões sindicalistas e corporativistas como "desmonte da educação pública", "ataque neoliberal e privatista às Universidades", "complô para precarização deliberada do serviço público e gratuito", é a falta de acesso por parte de alunos hipossuficientes financeiramente, às tecnologias necessárias para fruir deste modelo de ensino.
Por conta da já mencionada interdição ao debate, após três meses de suspensão das atividades, ainda não é possível estimar com clareza quantos e quem são os que compõem o grupo de alunos hipossuficientes e incapazes de fruir do ensino remoto.
Me permito opinar sobre o tema na condição de aluno, graduando, aflito e temeroso com esta situação, e possível indivíduo atingido pelo agravamento do fosso da desigualdade. Para alguns, principalmente os que vem das classes sociais mais baixas, o diploma é elemento essencial para mobilidade social, obtenção de emprego e renda. A competição com os pares de Universidades privadas fica desleal.
A mais intuitiva proposta é que a Universidade Pública financie, com recursos próprios, promovendo uma das vocações da Universidade Pública que é a assistência social visando a redução de desigualdades, as condições para que estes alunos hipossuficientes tenham os meios de fruir do ensino remoto.
Em resumo, fazer como fez a USP e simplesmente doar computadores e financiar conexões para estes alunos. Fica, então, a pergunta: De onde viriam estes recursos?
Após calorosas discussões sobre o tema com os resistentes colegas contrários ao ensino remoto, decidi analisar superficialmente (ou nem tanto assim) os orçamentos das Universidades Federais.
Fui ao "Education at a Glance" de 2019, relatório da OCDE sobre o ensino de primeiro, segundo e terceiro grau, e descobri que as Universidades públicas dos países da OCDE em média gastam 89% de seus orçamentos com despesas correntes.
Destes 89% com despesas correntes, 69% são gastos em com folha de pagamento (global, incluindo professores e não professores).
Isso significa que, em média, cerca de 60% do orçamento total das universidades dos países da OCDE é gasto com folha de pagamento.
Segundo reportagem do jornalista Itamar Mello, do jornal gaúcho Zero Hora, as Universidades Federais brasileiras gastam em média cerca de incríveis 90% dos seus orçamentos com folha de pagamento, 30% a mais do que a média da OCDE.
Na Universidade Federal Fluminense (onde estudo), por exemplo, foram gastos 2.1 bilhões de reais no ano de 2019 de acordo com o portal da transparência. Deste valor, cerca de 1.87 bilhões de reais foram gastos com folha de pagamento.
Segue exatamente a média de 90% de comprometimento com despesas de pessoal levantada pelo jornalista.
Embora eu não tenha em mãos o dado médio das Universidades Estaduais, o exemplo da Unicamp, que chegou a ter 102% de seu orçamento comprometido com folha de pagamento, indica que o cenário não é muito diferente.
Falar sobre isso na Universidade Pública é um tabu. A verdade é que o orçamento é uma guerra de interesses, e o interesse das corporações de funcionários públicos (que obviamente não deve ser ignorado) está sendo absolutamente hegemônico e sobrerrepresentado, capturando o orçamento, e sufocando outras demandas. Qual o limite?
Por fim, não deixa de ser estranho ser tratado como um pária entre autodenominados progressistas, por sugerir que o custeio com o pagamento de computadores e conexões para alunos hipossuficientes, com o objetivo de combater a desigualdade, isto é, assistência social, venha da redução do percentual destinado a este tipo de gasto.
Precisamos de bom senso, alteridade, ciência, dados e empatia.
O muito interessante seriado da Netflix chamado "História: Direto ao Assunto" traz algumas reflexões.
O primeiro episódio mostra bem a dinâmica de uma sociedade de mercado. Primeiro, a livre iniciativa traz uma solução à demanda por comida em larga escala, barata e rápida: O Fast Food.
Trata-se de algo desconhecido, uma verdadeira revolução, no entanto, parece ser uma relação ótima (no sentido de Pareto), win-win. Mais empregos, aumento do acesso à comida às classes mais baixas, grande competição, internacionalização, demanda das grandes corporações por insumos dos produtores locais.
E então a ciência, que é lenta, porém contundente, atua. Pesquisadores observam o fenômeno, até então desconhecido, produzem conteúdo, discutem e convergem ao consenso: O Fast-Food se tornou um dano não desprezível à saúde humana.
O Mercado, contudo, reage negando as evidências. E elas são esmagadoras. Obesidade é o sinal mais óbvio.
O Estado, influenciado pela ciência, começa a agir tentando intermediar o conflito ciência e mercado. Lideranças políticas se erguem. A imprensa livre publiciza o debate.
O cidadão, depois de todo este processo, começa a se convencer do que a ciência argumenta.
Este é o momento que o mercado recua em sua resistência, porque é um escravo da demanda do consumidor. É quando as corporações começam a mudar sua forma de fazer o fast food, oferecem opções saudáveis, inclusive veganas. Surgem novas empresas, a concorrência pressiona.
No entanto, uma nova geração nasceu sob vício daquele modo de fazer comida que se tornou um fenômeno cultural.
Então começa o esforço da sociedade civil organizada e do Estado em convencer, persuadir, e em última análise intervir para regular esta atividade, seja para ajudar a diminuir a falha de mercado chamada "assimetria de informação", obrigando que a própria indústria informe ostensivamente sobre os riscos, seja intervindo diretamente na produção com restrições mais rígidas.
Qual a lição? O livre mercado é mau? Não me parece que seja.
Foi do autointeresse de atender a demanda por comida gostosa, rápida, barata e acessível que veio uma nova indústria. Ela gerou valor, emprego, alimentou e trouxe riquezas, inclusive para produtores locais de alimentos de países pobres pelo mundo.
Entretanto, o mercado é falho.
Ele precisa da Ciência Independente, da Democracia Funcional e da Imprensa Livre para um bom funcionamento. Ninguém é mau neste processo de tentativa e erro, que é o melhor que temos. Nem o Mercado, nem o Estado, nem a Imprensa. São todos reflexos da sociedade em que se inserem.
Esta é a organização do mais avançado estágio civilizatório que pudemos desenvolver, e deveria ser a síntese do nosso século.
Nestes tempos estranhos, um liberal convicto acaba recorrendo, sem maior pudor, à célebre frase do filósofo comunista Karl Marx:
"A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa"
Muito tem sido noticiado a respeito do estreitamento da relação entre o médico Osmar Terra, conhecido entre seus pares por ser um "terraplanista" da área médica, isto é, um charlatão que nega a ciência, e o Presidente Jair Bolsonaro, que esta altura dispensa maiores relatos sobre o fato de que exerce um dos piores mandatos da história da República.
Este relacionamento me fez recorda de curioso fato histórico, vez ou outra rememorado nos bancos da academia jurídica.
Certa vez, nesta estranha República Latino-Americana, um médico de nome "Cândido Barata Ribeiro" foi indicado para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Exerceu o cargo por 10 meses, quando foi rejeitado pelo Senado Federal e deixou o Supremo. O Senado considerou que faltava ao médico, sem formação em Direito, um dos requisitos para o cargo, a saber: "notável saber jurídico".
Considerando a escalada no relacionamento entre o Presidente da República e o médico Osmar Terra (Plana), me pergunto até onde este estranhíssimo país repetiria caso tão peculiar, e protagonizaria esta farsa. Já pensou? Melhor nem dar ideia.
E que o falecido Barata Ribeiro, abolicionista convicto de honrada biografia, me perdoe pela horrorosa comparação.
Neoliberalismo. Provavelmente o leitor já ouviu ou leu essa palavra por aí, principalmente durante um comentário, debate ou análise de natureza política.
Funciona quase que como uma senha para crítica ao capitalismo, ao pensamento liberal, ou mesmo para demonstrar pertencimento ao espectro político de esquerda. É usada como uma palavra coringa, cujo significado importa menos que o estigma que carrega. Sinaliza virtude a quem profere, e superioridade moral.
Se amolda a qualquer contexto, e tem o poder de concentrar em si referências das mais abstratas e diversas. Se você é chamado de neoliberal, isto pode significar alguma coisa envolvendo odiar pobres andando de avião, querer matar pessoas de fome, apoiar Augusto Pinochet, e ser um milionário ganancioso ou sua marionete.
Qualquer assunto que subitamente se torne de grande atenção mundial ou nacional pode dar ensejo ao uso do termo para algum tipo de "análise", seja o Coronavírus ou o Big Brother Brasil:
Ele pode estar em lugares tão distintos como um trabalho acadêmico sobre urbanismo, ou no discurso de uma chapa para candidatura de DCE. Mas será que um conceito, cujo propósito inicial é ser uma ferramenta analítica, não perde completamente o sentido por possuir tantos significados simultâneos, de forma tão indefinida e incoerente, e principalmente pelo uso exclusivo por parte de um grupo político tão homogêneo?
Este que vos escreve sempre achou estranho o uso de uma palavra que, etimologicamente, serve muitíssimo bem para definir seu próprio pensamento político, um "novo" liberalismo. Por este motivo, no ano de 2018, numa semana onde o termo Neoliberalismo re repetiu bastante, tentou identificar na literatura científica qual era realmente a definição de Neoliberalismo.
O resultado foi o texto que ora se reproduz:
"Por algumas semanas estive fora do Facebook, e há algum tempo não escrevo nada, mas duas situações que aconteceram comigo recentemente me fizeram refletir e escrever de novo.
A primeira delas foi a organização, por parte do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFF, de um evento chamado "O acesso à moradia no Brasil e o agravante do neoliberalismo". São dois assuntos que me interessam profundamente, urbanismo e neoliberalismo, ainda assim, me vi absolutamente indisposto de ir até o evento, e me perguntei o porquê.
Dias depois, o jornalista Pedro Dória fez um post em sua página onde falava de abertura comercial, no que eu brinquei chamando-o de neoliberal, e a resposta fora rápida: Não me associe ao termo.
O que há de comum na situação é o enorme desconforto gerado com o uso da palavra "neoliberal", seja quando alguém usa para dar um tom pejorativo, como no evento do CAEV, seja quando alguém se defende do termo, por reconhecer nele a pejoratividade, mesmo que tenha sido utilizado de forma neutra, ou até mesmo elogiosa, como no post do Pedro.
Ocorre que eu, particularmente, sempre achei estranha esta carga ao conceito de neoliberalismo, porque etimologicamente é um excelente termo para definir meu próprio pensamento, que em meu juízo, obviamente, não é nem radical, nem "do mal", como usualmente se julga aquilo que é neoliberal.
Bom, durante o post do Pedro eu fiz uma rápida pesquisa no google para tentar entender o que diabos é neoliberalismo, esse conceito que todos parecem entender, mas ninguém sabe muito explicar. A princípio, o melhor material que encontrei foi uma matéria da The Economist, e um paper do Milton Friedman chamado "Neoliberalism and Its Prospects", tendo este último - e também o primeiro de certa forma - dado uma definição de neoliberalismo que muito se assemelha ao "social liberalismo", ou ao liberalismo cujas convicções se amoldaram às evidências científicas modernas, bem como à síntese humanista.
Inclusive, em excelente conversa com amigos na faculdade, mostrei esta definição a um amigo, eleitor do Ciro, com enormes ressalvas ao pensamento pró-mercado, e este se surpreendeu em como aquela definição poderia, sem maiores problemas, defini-lo.
Foi então que hoje, em mais um post onde vi o conceito ser utilizado como sinônimo de "tudo que há de mal", resolvi levar a sério a pesquisa sobre ele. E, graças ao glorioso google acadêmico, encontrei o que provavelmente é um dos melhores materiais científicos sobre o tema: O paper intitulado "Neoliberalism: From New Liberal Philosophy to Anti-Liberal Slogan", dos autores Thaylor C. Boas e Jordans Gans-Morse, ambos do Departamento de Ciência Política de Berkeley, Universidade da Califórnia, que dispensa mais apresentações.
Ai você pode me perguntar: "Mas por que, Marco, este paper é um dos melhores? Porque ele é útil para o seu ponto?"
Bom, sim, ele é útil ao meu argumento, mas não se trata (apenas) disso. O artigo tem rigorosa metodologia, equidistância do seu objeto adequada, e robusta investigação empírica. Os autores analisaram detalhadamente 184 artigos científicos, publicados em 9 das mais conceituadas revistas científicas de Ciência Política do mundo*, no período de 1990 até 2005.
Mais artigos foram analisados, estes desde 1980, para identificar a frequência do uso do termo nas publicações. Todos os artigos analisados foram submetidos ao método de revisão por pares (peer review), que basicamente é um filtro de qualidade onde os artigos são revisados por outros acadêmicos da mesma área antes de serem publicados.
E o que este rigoroso e belíssimo estudou identificou? Bom, primeiro vamos aos dados:
1) O termo neoliberalismo teve um crescimento vertiginoso em seu uso na Academia, sendo citado em quase nenhum artigo em 1995, subindo para mais de 1.000 artigos anualmente entre 2002 e 2005.
2) Dos 184 artigos detalhadamente analisados, 4% mencionam o termo positivamente, 45% negativamente, 45% de forma neutra e 8% de forma mista
3) De todos os artigos, 69% não definem o conceito de neoliberalismo. E vem piorando, no período de 2002 a 2004, 76% dos artigos não definem o conceito.
4) Neoliberalismo vem sendo utilizado para se referir aos mais diferentes fenômenos, sendo em 72% dos casos referente à políticas públicas, 39% modelo de desenvolvimento, 22% ideologia, 14% paradigma acadêmico.
O artigo segue fazendo uma brilhante análise, inclusive na genealogia do conceito, que nasceu para definir um liberalismo mais ponderado que o do século XIX, e terminou vinculado - ao menos e sobretudo na América Latina - ao radicalismo de Augusto Pinochet.
A conclusão deste brilhante estudo explica o porquê eu não fui à palestra do CAEV, e também porque o Pedro se defendeu do adjetivo neoliberal:
Em tradução livre - "O uso acadêmico do neoliberalismo (conceito) é problemático de diferentes formas. Seu significado não é debatido, e por muitas vezes sequer definido. Como resultado, não nos deparamos com muitas definições de neoliberalismo, e sim com muito poucas. O termo ainda é utilizado de forma assimétrica e desequilibrada no espectro político raramente aparecendo entre acadêmicos favoráveis ao livre mercado".
Este último trecho é sintomático, já que para que um conceito se mantenha vivo sem que o debate morra, é imprescindível que tenha defensores e críticos, pois se apenas detratores houverem, então o significado do conceito se torna a própria crítica, perdendo completamente sua função orginal, passando a ser utilizado como slogan e propaganda, ao invés de instrumento analítico.
A conclusão dos autores, depois de refletirem as circunstâncias históricas que levaram o uso de neoliberalismo de um sinônimo de liberalismo moderado para algo radical e autoritário, inferindo a falta de debate como um dos causadores dessa mudança brusca, continua afirmando:
"[...] Se o (conceito) de neoliberalismo deve ter um valor mais analítico que retórico para cientistas políticos, este deve retomar um robusto significado comum, retornando às suas raízes etimológicas e entendido como uma noção concreta de "novo liberalismo".
Eles, então, reforçam que o termo nasceu cunhado (pela German Freiburg School) como uma nova forma de liberalismo que rejeita o dogma "laissez-fare" e assume uma ênfase humanística.
Por todo o exposto, fica claro o motivo da rejeição que me causa qualquer evento, sobretudo na Academia Latino-Americana, que use a palavra Neoliberalismo no título: Será sempre a estigmatização do que eu entendo por moderado e humanista, como radical e autoritário."
* Third World Quarterly; Studies in Comparative International Development; World Development; Latin American Research Review; Latin American Politics and Society; Journal of Latin American Studies; Comparative Politics; Comparative Political Studies; World Politics
O novo coronavírus vem afetando de sobremaneira nossas rotinas e hábitos pessoais. No entanto, além de impactar a população, é possível que esta pandemia deixe marcas profundas em nossas instituições.
Em "Por Que As Nações Fracassam?", Daaron Acemoglu e James Robinson atribuem à peste negra a responsabilidade pelos caminhos - radicalmente diferentes - que as então semelhantes monarquias absolutistas das ilhas britânicas e da península ibérica tomaram.
Trata-se de uma contingência histórica com impacto social poderoso, que agravou as pequenas rachaduras que diferiam aqueles povos, e criou um abismo entre eles. Segundo o livro, são nestes momentos que viradas institucionais ocorrem, e novos ciclos se iniciam, para o bem ou para o mal.
É bem verdade que a pandemia que nos afeta não possui a proporção daquela que assolou a Europa, bem como é verdade que nossa medicina se encontra em estado muito mais avançado. Contudo, não se pode negar que estamos diante de um grande impacto social contemporâneo.
Nosso modelo de Estado já vem observando tensões que podem agravar algumas pequenas rachaduras desenvolvidas nos últimos 30 anos, ao ponto de fazer com que elas se tornem rupturas de fato.
Um Federalismo extremamente centralizado, um Presidente da República autoritário e orgulhoso, e Governadores de Estado sendo altamente pressionados a preencherem o vácuo de liderança da União, são os ingredientes da receita que leva ao início de uma grande tensão entre o poder central e os poderes locais.
Nesta semana Wilson Witzel decidiu fechar as fronteiras e isolar o Estado do Rio de Janeiro como medida de contenção do vírus que se espalha. Bolsonaro, por sua vez, editou posteriormente Medida Provisória desautorizando os Governos Locais que pretendessem fazê-lo.
A relação entre Bolsonaro e Witzel irá moldar nosso novo Estado Federal. A situação ganha um tom irônico, porque uma das plataformas do super ministro Bolsonarista Paulo Guedes é o lema "mais Brasil, menos Brasília".
Uma rebelião dos Governadores se ensaia. Ronaldo Caiado, líder de uma antiga família de nossa aristocracia rural, Governador do Estado de Goiás, já desafia abertamente a Medida Provisória editada pelo Presidente da República.
João Dória se desponta como liderança do Estado mais rico do país, subindo o tom numa escalada rápida contra o Governo Federal.
O Nordeste criou um consórcio de vários Governadores que, isolando a União, negociam colaboração com um país estrangeiro, que por sua vez está em conflito com o Bolsonarismo: A República Popular da China.
Como dito, o Governo se elegeu, e mantém o discurso através do Ministério da Economia, com forte apologia à descentralização e autonomia dos Estados.
Bom, o Witzel e outros governadores levaram a sério, e o Bolsonaro não gostou. E é claro que não gostou, pois o discurso quando vira prática esvazia o poder central, que Bolsonaro controla.
Sabemos que Jair Bolsonaro não é o tipo de homem que renuncia ao seu poder momentâneo por uma melhora institucional de longo prazo: Ele não acredita no logo prazo, pois a história se resume a ele.
No limite veremos uma tensão entre Polícias Federais e Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com a possibilidade extrema de uma eventual intervenção das forças armadas no conflito.
Em um cenário menos radical, teremos a humilhação pública imediata do Governador do Rio de Janeiro, com a possibilidade da crise se agravar, e Bolsonaro ser responsabilizado por boicotar as medidas de prevenção tentadas pelo líder fluminense.
Em todos os cenários estamos diante de uma crise federativa sem precedentes na Nova República, que poderá reformular nosso pacto federativo de forma substancial.
Hoje fazem dois anos do assassinato da então vereadora Marielle Franco (PSOL - RJ). O crime segue sem qualquer solução, e os criminosos impunes.
Infelizmente vivemos um período de esquizofrenia política onde o assassinato de uma parlamentar virou termômetro de pertencimento a determinada tribo política. Se você cobra a solução do crime, lamenta o assassinato ou de alguma forma recorda de forma positiva da figura da vereadora, você automaticamente se torna uma pessoa "de esquerda".
Para se desvencilhar deste estigma, e afirmar-se como alguém "de direita", algumas pessoas sentem a necessidade de desdenhar de uma parlamentar brutalmente assassinada, diminuir sua importância ou recorrer à técnica que consiste em desviar do assunto principal com um "mas e o (insira aqui a morte de outra pessoa)?", agindo como se estivéssemos em uma gincana do Celso Portiolli para lamentar tragédias, ou como se o lamento fosse finito e, ao dedicá-lo a um sujeito, necessariamente faltasse a outro.
Bom, felizmente nem todos entraram nesse delírio político coletivo. Alguns, como eu, ainda que estando em uma posição política de oposição à maior parte das ideias da Marielle, e sendo pessoas "de esquerda", não possuem qualquer constrangimento em lidar da única forma humana possível com a tragédia ocorrida: Lamentando profundamente.
Nesta data, o (neo)liberal que vos escreve recorda com orgulho do texto que escreveu à época:
"É fundamental para a República uma resposta rápida, efetiva e dura neste atentado contra a Democracia brasileira.
O efeito do homicídio, além da monstruosa dor de todos afetos da vítima, neste caso, por ser uma representante do povo, e uma representante de uma parcela da população que se sentia muito bem representada por ela, é destruir, minar ou frear o ímpeto do sentimento republicano de uma geração inteira - minha geração - por medo.
São milhares, talvez milhões de jovens que a integram e, como eu, buscavam nas instituições a força para coragem de, de acordo com as regras do jogo, enfrentar um establishment político instituído no poder.
Um sentimento republicano, que pouco a pouco ia vencendo uma batalha travada com o sentimento das gerações anteriores de que "as coisas são assim, e quem é você para mudar? Não da, melhor ficar quieto e seguir sua vida".
O prejuízo de uma derrota no desenvolvimento do sentimento "Eu sou apto como qualquer outro a moldar as instituições políticas do país, disputando nas regras do jogo" é inestimável.
O homicídio da vereadora é um ataque brutal ao futuro da sociedade brasileira e de suas instituições políticas e econômicas, e também da esperança de que elas viessem paulatinamente se tornando mais inclusivas, com um poder mais descentralizado, num processo de subtração lenta e civilizatória dos poderes da elite para a sociedade de forma generalizada.
Avançamos como nunca antes nestes últimos 30 anos na construção árdua de instituições políticas e econômicas inclusivas e plurais, na construção de uma civilização moderna e tendente ao desenvolvimento.
Este homicídio, contudo, além da vida de uma mulher virtuosa, pode tirar a vida que começou a brotar nas nossas instituições políticas, e este assassinato é o assassinato da esperança do país.
Fizemos um bom trabalho até aqui, espero que não deixem morrer na minha geração a vida que brotou das sementes plantadas 30 anos atrás."
Recentemente a cidade de Campos vem presenciando a escalada de tensões entre a Administração Pública e os Servidores Públicos do Município, notadamente entre a categoria dos Médicos, embora não apenas.
Ao observador comum, pode parecer tratar-se, num primeiro momento, da contraposição entre Forte e Fraco, entre “Patrão” e “Empregado”. Ou, em outros termos, na luta por “Direitos”, ante um suposto desejo “exploratório” do Município. Toda a estética da luta operária é importada para a tensão entre Servidor Público e Administração Pública, ou, para tornar mais pessoal o dilema, entre Político Eleito - seja ele Prefeito ou Parlamentar -, e burocrata não eleito (admitido por Concurso Público).
Em que pese entendimento contrário, a importação da lógica entre Patrão e Trabalhador da iniciativa privada para o serviço público é um grande equívoco, quando não uma estratégia pouco republicana. Ocorre que diferentemente da relação privada, o servidor público não é parte hipossuficiente nesta relação, que possui características muito diferentes.
Em primeiro lugar, o empregador da iniciativa privada tem fortes incentivos para perseguir a maior eficiência em seu negócio, ou seja, uma maior produtividade ao menor custo possível. Deste interesse deriva um forte trabalho para controlar rigorosamente a assiduidade de seus empregados, a eficiência, a produtividade e a qualidade de seus funcionários. Também deseja sempre pagar o menor preço possível para obter este resultado almejado que faça seu negócio competitivo.
A sabedoria popular inclusive sintetizou este cenário em ditado: “É o olho do dono que engorda o gado”. Caso não possua sucesso neste objetivo, a punição ao empresário pode ser severa: A falência de sua empresa, e a perda de muito dinheiro investido.
O trabalhador da iniciativa privada, por sua vez, tem fortes incentivos para buscar ser o mais produtivo possível para este empregador, uma vez que esta produtividade pode evitar uma demissão, ou proporcioná-lo uma promoção e até mesmo um aumento salarial. Contudo, trata-se da parte mais fraca da relação de trabalho, já que tem poucas ferramentas para contrapor o ímpeto de seu empregador em pagar sempre o mínimo possível por seu trabalho. Tal situação se agrava em situações de crise econômica, onde o forte desemprego traz maior gravidade ao problema do Exército de Reserva, qual seja a existência de um sem número de desempregados que estariam aptos a assumir o mesmo posto de trabalho por cada vez menos.
Buscando equilibrar esta relação que, apesar de tender para grande produtividade e eficiência, pode desaguar em prejuízo do trabalhador, a política vem tentando ao longo dos séculos, por vezes de forma bem sucedida, por vezes de forma desastrada e irresponsável, editar leis trabalhistas que venham a proteger este trabalhador, sem contudo destruir o poderoso sistema de incentivos à produtividade que é inerente à iniciativa privada, ou seja, a competição entre empresas, o desejo de lucro e o risco de prejuízo que fazem com que o empresário busque incessantemente ter um produto melhor por um preço menor; e a competição no mercado de trabalho, a possibilidade de evolução na carreira, bem como o risco da demissão que fazem com que o empregado busque sempre ser mais produtivo, eficiente e responsável.
Observando o Funcionalismo Público pela ótica acima proposta do Sistema de Incentivos, o serviço público é extremamente mal projetado para a produtividade. Não por outro motivo, qualquer cidadão lúcido que tenha dependido de uma repartição pública, que tenha sido atendido por um funcionário público ou mesmo que frequente os corredores da Administração, constatará que trata-se de um serviço predominantemente ruim.
É notória a percepção da sociedade de que o serviço público tem um expediente estranhamente menor que o da iniciativa privada, apesar de já termos normalizado a ideia de que - por algum motivo que se desconhece - tal diferença “é normal”. Os famosos “enforcamentos”, pontos facultativos, para não mencionar aqueles que trabalham no famigerado regime “TQQ”, isto é, Terça, Quarta e Quinta, são algumas destas características.
Você, que trabalha com a carteira assinada, seja na Indústria, no Setor de Serviços ou no Campo; ou mesmo aqueles que trabalham informalmente, e até o empresário que conduz um negócio, tem alguma dúvida de que trabalha mais, com mais afinco e mais dedicação que a ampla maioria integrantes de uma repartição pública? Alguém visualiza um vendedor de loja de um shopping trabalhando menos, com menos atenção e dedicação ao te vender uma camisa, que um servidor de alguma Secretaria da Prefeitura ao recebê-lo para expedir um alvará do teu estabelecimento?
Quem já se dirigiu, por exemplo, à Receita Federal e passou pela via crucis de obter uma senha num horário de distribuição curtíssimo pela manhã, para que o horário de atendimento aconteça apenas durante à tarde, também em horário curtíssimo, talvez tenha a dimensão do absurdo. E não para pela Receita, poderia citar o DETRAN, a Secretaria de uma Universidade, a Secretaria de Fazenda do Município, o Cartório de uma Comarca. Já imaginaram o mesmo cenário quando fossemos a um restaurante almoçar com a família?
E o problema não é apenas o exíguo período de atendimento. O tratamento dispensado pelo Servidor Público ao Jurisdicionado é, via de regra, um tratamento rude e hostil. Impera a lei do menor esforço, a má vontade, que por sua vez faz com que este funcionário opte sempre pelos caminhos que levem ao seu maior conforto, e não à resolução da demanda do cidadão.
A esta altura pode parecer que está se formulando uma crítica pessoal aos Servidores Públicos, mas tal percepção se mostra totalmente equivocada. Não é por ser menos virtuoso, ter menos caráter, ser mais preguiçoso ou menos empático que o Burocrata presta um serviço com estas características negativas. O problema é absolutamente estrutural.
O Ser Humano tende a buscar sempre a maior satisfação pessoal, sem prejuízo dos momentos em que exerce a caridade, a doação, e as virtudes cristãs de amor ao próximo. É da natureza humana, inclusive biológica e evolutiva, buscar sempre o maior Estado de Conforto que puder. Considerando esta premissa, os sistemas de trabalho devem ser tal que, na busca do auto-interesse, o indivíduo realize por tabela, mesmo que sem intenção, o bem comum.
Quem primeiro teve a perspicácia de observar esta fenomenal característica na iniciativa privada foi Adam Smith, que a sintetizou em sua célebre frase: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que nós esperamos o nosso jantar, mas da consideração deles com seus próprios interesses”.
Ora, não é da benevolência dos trabalhadores ou patrões da iniciativa privada que se obtém destes um serviço de maior qualidade e por menor preço. É pela estrutura de incentivos que faz com que o trabalhador que queira um aumento, e manter-se empregado, assim como o empresário que queira lucro e manter sua empresa aberta, busque mais produtividade, reduzindo assim o custo do consumidor e melhorando o produto do trabalho.
No caso do serviço público este poderoso sistema de incentivos é ferido de morte. Tal situação ocorre porque as peças-chaves do sistema são retiradas por diversos motivos.
Em primeiro lugar, o Administrador Público, seja o político eleito, seja o servidor-chefe, não está lidando com o próprio dinheiro, pelo contrário, ele gere o “dinheiro público”, ou, nas palavras da Dama de Ferro, o dinheiro do pagador de impostos. Ao contrário do empresário, não há a perspectiva de enriquecimento com lucro caso o serviço seja prestado com mais qualidade e a um preço menor, nem o temor do prejuízo caso as contas não fechem, o produto seja péssimo e o preço seja alto.
Sobre a gestão de dinheiro alheio, Milton Friedman - economista que ganhou o prêmio Nobel de Economia no ano de 1976 – nos ensina. Segundo o renomado economista, são quatro o número de formas de gastar dinheiro, considerando um indivíduo racional médio que busca normalmente o auto-interesse:
Categoria I: Refere-se ao gasto do seu próprio dinheiro com você mesmo. Você faz compras em um supermercado, por exemplo. Certamente há um forte incentivo tanto para economizar quanto para obter o máximo de valor possível para cada dólar gasto.
Categoria II: Refere-se ao gasto do seu próprio dinheiro com outra pessoa. Você compra presentes para o Natal ou algum aniversário. Há o mesmo incentivo para economizar que há na Categoria I, mas não o mesmo incentivo para obter o máximo de valor para seu próprio dinheiro, ao menos segundo a avaliação do gosto do destinatário. Você vai querer comprar, é claro, alguma coisa que o destinatário talvez goste — contanto que isso também cause a impressão correta e não requeira muito tempo ou esforço seu. (Se, de fato, seu objetivo principal fosse o de permitir que o beneficiário obtivesse o máximo de valor possível por dólar, você daria a ele dinheiro, convertendo o gasto da Categoria II em gasto da Categoria I, a ser feito por ele.)
Categoria III: Refere-se ao gasto do dinheiro de outra pessoa com você mesmo — almoço pago por uma conta de despesas de terceiros, por exemplo. Você não tem um forte incentivo para manter baixo o custo do almoço, mas com certeza tem um forte incentivo para fazer valer seu dinheiro.
Categoria IV: Refere-se ao gasto do dinheiro de terceiros com outra pessoa. Você está pagando o almoço de alguém com o dinheiro de uma conta de despesas de terceiros. Há pouco incentivo tanto para economizar quanto para tentar obter para seu convidado o almoço que ele poderá apreciar mais. Entretanto, se você estiver almoçando com ele, de modo que o almoço seja uma mistura da Categoria III com a Categoria IV, há, na verdade, um forte incentivo para satisfazer seu próprio paladar em detrimento do dele, se necessário.
Como se observa, o Administrador Público está exatamente na situação de nº 3 e 4.
Não se ignora a possibilidade de um Administrador ou outro, apesar da quase inexistência de incentivos, promover uma boa administração, por meio de suas virtudes pessoais elevadas. Acontece que todo sistema que dependa exclusivamente de que a totalidade de seus integrantes sejam os mais virtuosos dos indivíduos, fracassará. Principalmente se comparado a um sistema em que o mero auto-interesse produz o bem-estar geral, e que a virtude apenas amplia este cenário já positivo.
É verdade que o mencionado incentivo decorrente do auto-interesse que move o empresário também existe, em alguma medida (ainda que substancialmente menor) para o político eleito, já que desperdício de dinheiro público, serviços mal prestados e irresponsabilidade fiscal podem trazer consequências políticas para sua carreira, a depender de como seus eleitores avaliam estas situações. Se a sociedade civil for informada, vigilante e unida, ela poderá exercer o controle que torna a pressão de grupos de interesse menos perigosa.
Um político que encontra um eleitorado desejoso de um perfil populista, ou sem qualquer instrução e informação, por sua vez, não tem incentivos para evitar este cenário, ao contrário, pode vir a comprometer o orçamento futuro com dividas bilionárias apenas para satisfação momentânea (Qualquer semelhança com Campos é mera coincidência). Isto ocorre porque o custo político de enfrentar corporações poderosas e organizadas, que se mobilizam contra o político e podem afetar sua carreira, se não for contraposta com uma organização e uma vigilância do resto da sociedade, fará com que, para este político, a ideia de atender a esta corporação seja uma boa ideia.
Se para o Administrador Público o sistema de incentivos é ruim, melhor sorte não socorre ao Servidor Público. Diferente de seu par na iniciativa privada, este não possui o temor da demissão, já que goza da estabilidade quase que absoluta que nosso ordenamento jurídico confere aos mesmos, e também não tem qualquer perspectiva de promoção ou aumento remuneratório baseado em produtividade, já que não existe a possibilidade de ser investido em cargo público superior sem a realização de novo concurso público.
Que não se faça objeções à tese de que não há aumento remuneratório no serviço público por produtividade mencionando as esvaziadas leis que tentam promover um caricato sistema de incentivos neste sentido. A prática nos mostra de forma contundente que se trata de mero teatro, como podemos observar desta matéria da Revista Exame, representativa de tantas repartições públicas pelo país, de onde se extrai o seguinte trecho:
"Uma análise das avaliações dos servidores da cidade de São Paulo, com base em dados do Diário Oficial, mostra que, dos 105.000 servidores na ativa em 2018, 86% tiraram a nota máxima, 1.000 pontos. Outros 13% emplacaram notas ótimas, na casa dos 900. Ninguém tirou menos de 700 pontos. Média geral: 997. Será que todo mundo faz por merecer esses notões?
As notas dos servidores de São Paulo são utilizadas para impulsionar gratificações, promoções e progressões de cargo. Ao que parece, impera uma espécie de camaradagem entre chefes e subordinados para que todos sejam agraciados com aumentos salariais ao longo da carreira. Afinal, são concursados e tendem a permanecer no emprego até a aposentadoria"
Ainda que o Servidor Público não seja análogo ao trabalhador da iniciativa privada em termos de hipossuficiência, vulnerabilidade e necessidade de proteção, este se comporta como se fosse. Inclusive, a reunião de servidores em sindicatos ou corporações de classe, instrumentos notadamente criados e pensados para os trabalhadores vulneráveis, se tornam verdadeiras agências de pressão ao poder público (ou Lobby, para utilizar o termo mais apropriado).
Via de regra, o sindicato dos servidores públicos, assim como as corporações de classe, são agentes extremamente poderosos e influentes nas tomadas públicas de decisões, fazendo intensas pressões por seus interesses, e não raro obtendo vitórias em detrimento de toda sociedade.
São várias as corporações que exemplificam o acima exposto. A Associação de Juízes Federais (AJUFE) tem uma poderosa parcela de responsabilidade na manutenção do status quo dos juízes, sejam suas férias de 60 dias, sejam os famosos “penduricalhos” que integram os vencimentos dos nobres magistrados.
Em Campos, contudo, a categoria dos Médicos é especialmente representativa da questão. Seja pela força do sindicato, seja pela força do Conselho de Classe (CRM). O CRM - assim como a OAB - frequentemente tenta restringir a oferta de vagas dos cursos de medicina sob a desculpa de manter a qualidade dos serviços médicos no país. Contudo, como um observador atento já terá percebido, esta medida contribui fortemente para a manutenção artificial de altos salários da classe, já que restringe a oferta de profissionais num cenário em que a demanda está em franco aumento.
Quanto menos médicos formados, mais dinheiro os médicos já formados receberão, por uma simples lei da oferta e da procura. Aqui, pela primeira vez, vemos um motivo nobre como pretexto para a defesa de um interesse puramente particular e de classe.
O Sindicato dos médicos na cidade, por outro lado, fez um grande alarde após a implementação pelo poder executivo do controle da assiduidade por meio do ponto eletrônico.
Antes de aprofundar na questão, é importante mencionar novamente que aqui não se faz qualquer crítica pessoal a médico algum. Trata-se de um problema estrutural, em que o sistema de incentivos vigente estimula um cenário onde disfuncionalidades acontecem.
Em verdade, não é difícil aceitar que os médicos realmente acreditem estar atuando em prol da sociedade, do bem comum, de causas nobres e republicanas, pois, como diria o já mencionado Milton Friedman: “Já estamos familiarizados com a capacidade que todos temos de acreditar que o que é do nosso interesse é do interesse social.”.
Retomando a discussão, o movimento grevista dos médicos da cidade de Campos foi uma reação virulenta à redução de gratificações, férias e sobretudo ao controle de assiduidade dos médicos da cidade por meio do ponto eletrônico. Um importante fenômeno se observa quando os médicos não assumiram tratar-se de uma revolta em relação a estes pontos, e tentaram convencer a população de que na verdade a greve ocorreu pela preocupação da classe com a infraestrutura dos hospitais.
Ora, aqui é preciso de uma grande ingenuidade para crer em algo desse tipo. A absoluta coincidência e o timing da classe para ter esta poderosa reação ter acontecido exatamente quando da implementação do ponto eletrônico, e da redução de alguns chamados “penduricalhos” nos vencimentos deixa clara a questão controvertida.
A própria tentativa de ocultar estes interesses de classe como sendo o causador da greve demonstra que existe a percepção de que o interesse da classe não é o interesse público, e que na verdade é um interesse às custas de todo o resto da sociedade. O que se tentou, novamente, foi instrumentalizar uma sabida deficiência da rede de saúde para obtenção ou manutenção de vantagens pecuniárias e de suavização da carga horária, com o pretexto de um motivo que contemple o interesse público.
Em “Livres Para Escolher”, coincidentemente, Friedman comenta a classe média nos Estados Unidos da América, e o mencionado trecho é essencial para entendermos o que ocorre por aqui:
"Na realidade, o sindicato dos trabalhadores contemporâneo pode remontar a uma época ainda mais distante, quase 2.500 anos, quando foi selado um acordo entre os médicos na Grécia.
Hipócrates, universalmente conhecido como o pai da medicina moderna, nasceu por volta de 460 a.C. em Cós, uma das ilhas gregas que ficam a apenas alguns quilômetros da costa da Ásia Menor. Na época, era uma ilha próspera e já um centro médico. Depois de estudar medicina em Cós, Hipócrates viajou muito, desenvolvendo uma grande reputação como médico, particularmente por sua capacidade de exterminar pragas e epidemias. Depois de um tempo, voltou a Cós, onde fundou, ou tomou sob seu encargo, uma escola de medicina e centro de tratamento. Ele ensinava a todos que queriam aprender — contanto que pagassem as taxas. Seu centro tornou-se famoso em todo o mundo grego, atraindo estudantes, pacientes e médicos de todas as partes.
Quando Hipócrates morreu, aos 104 anos — pelo menos assim diz a lenda —, Cós estava repleta de médicos, seus estudantes e discípulos. A disputa por pacientes era acirrada e, como era de se esperar, cresceu um movimento coordenado para que se fizesse algo a respeito disso — em terminologia moderna, para “racionalizar” a disciplina, de modo a acabar com a “concorrência desleal”.
Em função disso, pouco mais de vinte anos após a morte de Hipócrates — novamente, como diz a lenda —, os médicos se reuniram e elaboraram um código de conduta, que batizaram de Juramento de Hipócrates em homenagem a seu velho professor e mestre. A partir de então, na ilha de Cós, e aos poucos no resto do mundo, todo médico recém-formado, antes de começar a praticar a medicina, tinha de prestar tal juramento. O costume continua hoje como parte da cerimônia de graduação da maioria das escolas de medicina nos Estados Unidos.
Como a maioria dos códigos profissionais, acordos comerciais de empresas e contratos de sindicatos de trabalho, o Juramento de Hipócrates estava repleto de belos ideais para proteger o paciente: “Usarei meu poder para ajudar o doente no melhor de minha capacidade e discernimento. [...] Sempre que entrar em uma casa, irei para ajudar o doente e nunca com a intenção de lhe causar algum dano ou ferimento” e assim por diante.
Mas ele também cometeu alguns deslizes. Veja este: “Passarei preceitos, preleções e todos os demais conhecimentos aos meus filhos, aos meus professores e àqueles alunos devidamente preparados e juramentados, e a mais ninguém.” Hoje chamaríamos isso de um prelúdio a uma closed shop.*
Ou ainda este, referindo-se a pacientes sofrendo da angustiante doença de pedras nos rins ou na bexiga: “Não cortarei, nem mesmo pela pedra, mas deixarei tais procedimentos para os praticantes do ofício” 1 — um belo acordo de partilha de mercado entre médicos e cirurgiões.
Hipócrates, presumimos, deve se virar no túmulo quando uma nova turma de médicos presta esse juramento. Acredita-se que ele tenha ensinado a todos que demonstraram interesse e pagaram a devida taxa. Provavelmente, ele se oporia ao tipo de práticas restritivas que os médicos em todo o mundo adotaram desde aquela época até os dias de hoje com o intuito de se protegerem da concorrência.
A Associação Médica Americana (AMA) raramente é tida como um sindicato. E é muito mais do que um sindicato comum. Ela presta importantes serviços a seus membros e à profissão médica como um todo. Entretanto, também é um sindicato de trabalhadores e, em nosso modo de ver, tem sido um dos sindicatos mais bem-sucedidos do país. Durante décadas, manteve baixo o número de médicos, manteve alto o custo da assistência médica e evitou a concorrência aos médicos “devidamente preparados e juramentados” de pessoas fora da profissão — tudo, é claro, em nome da assistência ao paciente. Neste ponto do livro, já não é necessário repetir que os líderes da profissão foram sinceros em sua crença de que a restrição ao ingresso na medicina ajudaria o paciente. Já estamos familiarizados com a capacidade que todos temos de acreditar que o que é do nosso interesse é do interesse social."
Infelizmente o Governo Municipal - em lamentável falta de coragem e de defesa do interesse público - após intensa pressão desta classe tão antiga, poderosa e organizada, recuou substancialmente na sua postura diante dos médicos. Se inicialmente a Administração, numa rara e louvável manifestação de virtude ao exigir dos servidores produtividade, eficiência e a prestação de um serviço melhor, exatamente como no caso da iniciativa privada, este ímpeto não resistiu ao lobby do funcionalismo público municipal da classe médica.
E quem perde com isso? Quem perde com isso é uma minoria silenciosa, desorganizada, sem poder de pressão – de lobby -, invisível, vulnerável e hipossuficiente. O jurisdicionado, o pagador de impostos, o dependente da saúde pública, sobretudo os pobres cidadãos da cidade de Campos, perderam a oportunidade de serem atendidos por profissionais mais produtivos, mais assíduos, que frequentem de fato os seus postos de trabalho, por um custo menor para o combalido orçamento público.
Este é, sem dúvida, um dos grandes desafios da democracia moderna. Impedir que minorias organizadas e poderosas triunfem às custas de uma maioria desinformada, desorganizada, mal instruída e vulnerável.