Ditadura da falta de alternativas e moralização da política: duas ameaças à democracia
16/10/2019 23:28 - Atualizado em 16/10/2019 23:38
Crise é uma situação normal na modernidade. É o resultado tanto da volatilidade das instituições sob as quais vivemos como das grandes expectativas geradas pela política, pelo humanismo iluminista e pela promessa dos direitos humanos. A normalidade da crise é a normalidade do descompasso entre expectativas e as condições improváveis necessárias para sua realização. Na política, as crises se multiplicam junto com a frustração de expectativas sociais, que o sistema político não é capaz nem de conter nem de atender. A recorrência das crises políticas varia evidentemente com particularidades do contexto regional e histórico. Mas tanto as contradições gerais do sistema político como aquelas entre a política e a sociedade parecem estar presentes, em intensidades e combinações diversas, na grande maioria dos casos de crise política.
A contradição interna entre expectativas e realidade política está quase sempre ligada às relações entre política e sociedade, especialmente aquelas entre política, direito e economia. Para Marx, o compromisso do Estado burguês com a sacralização jurídica da propriedade privada o torna incapaz de promover qualquer processo de transformação e estruturação da realidade social que favoreça às classes trabalhadoras e populares. Concordo com muitos críticos de que esta premissa sobre a natureza necessária do compromisso burguês do Estado é uma das fraquezas mais evidentes na teoria marxista do Estado: o desenvolvimento da política e do direito exibem paisagem bem mais diversa, na qual encontramos contextos em que o compromisso com a propriedade privada é clara e efetivamente relativizado em favor de outros compromissos e direitos, como os direitos sociais.
Marx entendia que somente com a superação absoluta do regime da propriedade privada poderiam emergir e se instituir outras formas de propriedade. No entanto, as formais jurídicas e políticas do Estado constitucional e democrático moderno se mostraram mais diversas e robustas do que ele pôde vislumbrar ou descrever.
 Ditadura da falta de alternativas
 A idolatria institucional reacionária e a ausência de alternativas programáticas reais e viáveis politicamente, que Marx identificava toda vez que a democracia burguesa de sua época parecia avançar, foram relativizadas durante a criação e desenvolvimento do Estado de bem-estar social, que envolveu não apenas a promoção de interesses e formas de bem comum contrárias ao interesse do grande capital, mas também a reestruturação da economia e de outras esferas sociais como o direito e a educação. Envolveu não apenas mudanças na distribuição, mas também na produção da riqueza. Entre “capitalismo” e “socialismo” existem não apenas contradições, mas também combinações possíveis: nem a economia de mercado nem a propriedade privada impedem, por si mesmas, a democracia, os direitos de cidadania e o surgimento de outras formas de propriedade. A ditadura da falta de alternativas não é uma necessidade do capitalismo. É também o resultado da idolatria institucional reiterada pelos partidos e políticos contemporâneos. É um problema político que pode ter solução política.
Assim como na época de Marx, hoje o rompimento com a idolatria institucional exige desnaturalizar as doutrinas e modelos que as classes economicamente dominantes querem fazer parecer imutáveis. A dissidência de economistas como André Lara Resende contra o que ele mesmo chama de “conservadorismo intelectual” neoliberal mostra que o ímpeto em romper com esta idolatria existe até mesmo em setores associados aos “capitalistas”. No pensamento de Roberto Mangabeira Unger este ímpeto é o mais intenso possível e envolve não menos que a crença de que as forças produtivas da “economia do conhecimento” abrem possibilidades reais de reestruturar as relações de produção de modo radical, ainda que por caminhos incrementais. A relativização da propriedade privada é apenas um dos aspectos envolvidos no exercício de imaginação institucional de Unger, no qual as práticas produtivas mais avançadas da economia do conhecimento possuem vários futuros possíveis, entre os quais um futuro inclusivo e revolucionário para as relações e categorias econômicas vigentes.
A crise do sistema político, causada diretamente pela reiterada frustração das expectativas das maiorias sociais, precisa ser entendida a partir das dificuldades do sistema político em realizar novamente tarefa que precisou desempenhar em sua transformação em Estado de bem-estar social: criar alternativas programáticas reais, ou seja, alternativas de políticas públicas que envolvam as mudanças institucionais necessárias para atender as demandas por inclusão social. Se o Estado brasileiro consegue implementar com qualidade muitas políticas públicas é porque foram criadas inovações institucionais capazes de garantir padrão de inclusão e qualidade em contexto federativo complexo e desafiador. É o caso, por exemplo, de muitas políticas do SUS e da política de educação básica em alguns estados da federação.
No período democrático entre 1945 e 1964, como mostra Octavio Ianni em O Colapso do Populismo no Brasil (Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1968), vários projetos nacionais de desenvolvimento disputavam a condução política da grande política brasileira e davam conteúdo programático às dicotomias esquerda/direita, conservador/progressista etc. A existência de um projeto nacional vigoroso e popular como o de Getúlio Vargas não só estimulou a emergência de projetos contrários do outro lado, como também contribuiu para o enraizamento dos partidos que representavam caminhos distintos para o país. É obvio que o próprio golpe de 1964 não pode ser explicado sem as contradições deste período democrático anterior, mas isto não invalida o principal: a existência de projetos políticos com linhas programáticas claramente divergentes entre si é um pré-requisito para que o sistema político e a democracia possam promover o difícil caminho de mudar as estruturas institucionais da economia, da política, do direito e de outras esferas responsáveis pela reprodução do subdesenvolvimento e da subcidadania.
Para o sociólogo alemão Niklas Luhmann, um intelectual de viés claramente conservador, o futuro da democracia depende decisivamente da capacidade do sistema político em oferecer alternativas programáticas realmente divergentes para lidar com os problemas da sociedade. A crescente incapacidade da política em regular e em reorganizar a economia, o que para Luhmann é muito mais resultado da crescente complexidade do sistema econômico globalizado do que de um conjunto de políticas públicas específicas implementando tanto por partidos de centro-direita como de centro-esquerda, tira da democracia um eixo fundamental de politização, o que compromete não apenas as possibilidades de promover inclusão econômica por meio de políticas públicas, mas também as chances de financiamento do Estado de bem-estar social e com isso sua capacidade de garantir direitos sociais:
“A democracia é normalmente entendida como significando que a escolha de um determinado partido político ou coligação envolve a decisão por um programa político que difere do programa de outros partidos. Isso pressupõe uma correspondente programação partidária de oposição binária – por exemplo, conservador/progressiva ou, uma vez que isso não mais funcione, políticas restritivas/expansivas de Estado de bem-estar social ou, se a economia não permitir isso, recorre-se à dicotomia entre preferências ecológicas e econômicas. Só assim é que se pode escolher possíveis direções de rumo político. Os partidos, no entanto, parecem ter medo dos riscos envolvidos.”(Luhmann, The Future of Democracy,1990, p. 51).
Moralização
Ainda que não defenda a intervenção do Estado na economia, Luhmann reconhece que a idolatria institucional e a despolitização da economia significam perda de alternativas programáticas para o sistema político e ameaça à democracia. O diagnóstico não difere, portanto, muito do revolucionário Marx e até mesmo do liberal nacionalista Weber, para quem qualquer ideia de uma relação de afinidade entre capitalismo monopolista, democracia e liberdade não passa de uma falácia. É esta ditadura da falta de alternativas, para a usar a expressão provocativa de Unger, que a política busca de certo modo compensar com a crescente moralização da opinião pública. O predomínio de julgamentos morais sobre a pessoa global dos candidatos, a concentração em torno de pautas comportamentais e identitárias de direita e de esquerda e a demonização de partidos e elites políticas são tentativas inviáveis de compensar a ditadura da falta de alternativas:
“A controvérsia moral é colocada no lugar da controvérsia política. Parece haver uma lei política aqui: quando o dinheiro como meio de política escasseia, a moralidade como substituto aumenta. Em geral, os políticos aceitam o jogo de que se trata de ensinar ao povo quem deve e quem não deve ser respeitado – respeito ou desrespeito como sanção moral aplicada à pessoa ou ao partido como um todo” (Niklas Luhmann, The Future of Democracy, p 1990, p. 51).
No entanto, para Luhmann, o moralismo não apenas é incapaz de compensar efetivamente a falta de alternativas programáticas, como também representa uma ameaça adicional à democracia: como uma de suas condições informais, a democracia exige a renúncia em moralizar o oponente político, em não colocar em questão a legitimidade da oposição e da alternância de poder. No período entre 1945 e 1964, o anticomunismo moralizou todas as alternativas do espectro político de nossa democracia, demonizando partidos e políticos nacionalistas e de esquerda, e criou o ambiente sociocultural para o golpe que assassinou um processo de desenvolvimento político altamente promissor, com um sistema partidário que vinha se enraizando na sociedade e cirando alternativas programáticas que hoje não temos à disposição.
Na democracia instituída com a constituição de 1988, o Brasil ficou órfão de projetos de país. A invenção de um projeto progressista estimula e suscita a invenção de um projeto conservador ou liberal conservador. E vice versa. Mas os dois partidos que mais se alternaram no poder nunca romperam com a idolatria institucional, especialmente na economia política. Hoje não temos projeto nem de direita nem de esquerda. Temos apenas adaptação passiva e humanização do inevitável, compensadas por controvérsias morais que no máximo servem para punir às classes dirigentes mediocrizadas pela pequena política, mas jamais para criar projetos nacionais de desenvolvimento e programas políticos. Reinou e ainda reina a idolatria institucional e a ditadura da falta de alternativas.
São vários os fenômenos de moralização, e eles se retroalimentam em círculo vicioso. O antipetismo é talvez o melhor exemplo, mas deve ser entendido no contexto de outros fenômenos moralistas na política como o lavajatismo e o bolsonarismo. Do lado da esquerda, com o protagonismo da política identitária, reforça-se igualmente o círculo vicioso da moralização: como argumenta Mark Lilla,o julgamento moral de grupos e pessoas como condição de fala e participação desloca o engajamento com a construção de agendas de políticas públicas e de narrativas politicamente eficazes.
Ao focar exclusivamente no comportamento e na identidade de grupos ou pessoas, a política identitária também reforça a idolatria institucional, pois as controvérsias sobre quem merece consideração e quem deve ser desconsiderado, sobre quem é aceitável no jogo e quem não é, não é capaz de desbravar alternativas de construção e reconstrução institucional sem as quais um país complexo como o Brasil não consegue se desenvolver política, econômica, educacional, jurídica e culturalmente, e com isso implementar e ampliar efetivamente os direitos de cidadania. O moralismo reforça a fraqueza dos partidos em criar programas e em vez de produzir polarização política, engendra fragmentação sem alternativas.
Esquerda e direita só fazem importar modelos institucionais e narrativos, ceifando qualquer ímpeto programático próprio, substituído pelo espectro moralista que assedia a política toda vez que as elites dirigentes não conseguem formular programas e alternativas para a grande política, para as questões de mudança do estado e da sociedade, mediocrizando-se na pequena política dos corredores e conchavos, para usar uma distinção conceitual de Gramsci. Não se trata de condenar aqui a pequena política, necessária aos políticos como a respiração a todos nós, pois isto seria justamente repetir o moralismo que é parte do problema.
Trata-se de entender que a democracia depende da existência de alternativas para a grande política, ou seja, de alternativas que envolvam imaginar e se engajar conjuntamente com um futuro nacional comum, vivenciando o que Benedict Aderson chamou de “comunidades imaginadas” (ANDERSON, B. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. New York: Verso, 1983). Conservador por “razões de complexidade”, Luhmann se vê diante de um paradoxo que todo conservador consequente acaba tendo que enfrentar ao observar com coragem os desafios do mundo acelerado da modernidade para a conservação de qualquer bem ou valor comum: ao admitir que a preservação (ou reconstrução) de uma estrutura de alternativas programáticas é necessária para conservar a democracia representativa, Luhmann assume que a própria conservação depende do jogo dinâmico entre alternativas divergentes, ou seja, da mudança. Para conservar a validade dos procedimentos democráticos ele admite a necessidade de dotar a democracia de conteúdo programático e alternativas políticas de reestruturação de diferentes esferas sociais. Questões da grande política como o enfrenamento do subdesenvolvimento e da subcidadania precisam ser enfrentadas, mesmo se o objetivo for apenas conservar o ganho civilizatório da democracia enquanto alternância de elites no topo do sistema a partir não apenas do sufrágio, mas também do apoio popular aos partidos e a seus programas. Por isso, um conservador intelectualmente informado teria, no Brasil, boas razões para apoiar um projeto nacional de desenvolvimento e redução das desigualdades. Sem estas mudanças estruturais não se pode conservar a democracia no Brasil por muito tempo.

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    Roberto Dutra

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