Insuficiência de pés
*Adélia Noronha 05/09/2019 14:30 - Atualizado em 09/09/2019 14:04
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Na rodoviária de Niterói, à espera do ônibus para retornar a Campos, meu celular toca. Número do Rio de Janeiro, mas ligação de Campos. Dona Sueli, me cumprimentando pelos artigos sobre cultura que eu e meus amigos publicamos na “Folha Letras”. Ela obteve meu número na Folha da Manhã. Ainda não a conheço pessoalmente. Ela sugeriu também uma homenagem a Fernanda Young. Recordei de um artigo que escrevi sobre seu primeiro livro, “Vergonha dos pés”, quando eu ainda cursava o último ano do ensino médio, em 1997. O artigo me rendeu um prêmio. Enviei-o à editora de Fernanda. Ela me escreveu uma carta agradecendo gentilmente o comentário. Disse que nunca havia pensado no “pé” do título como metáfora de nossa civilização, mas gostou da interpretação. Divulgo a carta na íntegra ao final do artigo.
Depois de “Vergonha dos pés”, Fernanda publicou vário livros que a vida não me permitiu ler. Pela ordem de publicação, “A sombra de vossas asas” (1997), “Cartas para alguém bem perto” (1998), “As pessoas dos livros” (2000), “O efeito Urano” (2001), “Aritmética” (2004), “Dores do amor romântico” (poesia, 2005), “Melhores momentos de Os normais” (2005), “Tudo que você não soube” (2007), “O pau” (2009), “A louca debaixo do branco“ (2012), “A mão esquerda de Vênus” (2016), “Estragos” (2016) e “Pôs-F” (2018). E ela deixou inéditos.
Para uma mulher que morreu aos 49 anos e trabalhava intensamente na Rede Globo, Fernanda foi prolífica. Reproduzo abaixo o artigo que escrevi em 1997 como homenagem póstuma.
Insuficiência de pés
Em várias culturas, o pé humano apresenta um simbolismo ambíguo. Ora, representa, base, firmeza, estabilidade. Ora vem a ser uma parte desprezível do corpo em vista de estar em contato com a terra. Nesta última acepção é que o pensador renascentista italiano Picco Della Miranda concebia os pés. Seja como for, esta extremidade só perde em significado, na civilização ocidental, para a mão.
Em “Vergonha dos pés” (Rio de Janeiro: Objetiva, 1996), romance de estreia da jovem escritora Fernanda Young, uma leitura literal pode levar à conclusão de que o título do livro alude aos pequenos pés da personagem principal. Ana, uma mulher de corpo avantajado, idade indefinida e beleza peculiar, odeia seus exíguos pés. No romance que Ana pensa escrever e que jamais escreverá, existe também uma mulher como personagem principal. Trata-se de Lívia. Diz a narradora que “Os pés de Lívia eram pequenos”. Não que Ana admire seus pés minúsculos, mas, em Lívia, ela consegue enxergá-los. Falado desta forma, poderá parecer que os pés de Ana são microscópicos. São e não são. Não são, pois um pé trinta e três é visível a olho nu. E são, pois, para Ana, vendo de onde ela os vê, é como se não tivessem crescido. Ela olha para baixo e vê seus pezinhos, os mesmos da infância, lá embaixo.
Uma leitura mais atenta, contudo, parece revelar que o pé consiste numa grande metáfora que perpassa todo o livro, informando ao mesmo tempo da personalidade de Ana e do contexto histórico em que ela vive. Ana não cresceu por dentro, só por fora. Seu corpo avolumou-se, mas seus pés continuaram infantis. “Os pés dizem muito das pessoas — pensa Ana. Todo o corpo fala de seu dono, mas os pés denunciam”. Ana tem uma história pessoal bem típica da geração pós-68. Foi discretamente abandonada pelo pai. Tem uma relação difícil com a mãe, de quem não gosta muito, e se culpa por este sentimento. Aliás, Ana aceita todas as culpas do mundo, como Josef K, em “O processo”, de Kafka. Tem uma especial vocação para o fracasso nas suas relações amorosas. Mulher melancólica, solitária e infeliz, Ana vive mergulhada num permanente tédio e incomunicabilidade, a não ser, talvez, com sua amiga Elisa.
Mas não se pode compreender Ana apenas por seu temperamento e por sua história pessoal. Há um terceiro componente que entra na formação de sua personalidade: a sua época. “A geração de Ana — esclarece a narradora — é pós-sutiã-queimado. Não sabe se defende ou se quer ganhar joias. Ficou entre o ‘Avante, patota’ e um cartão com rosas vermelhas. O que, na verdade, Ana sempre quis é descansar. De certa forma, ele se sente como se houvesse participado de mil passeatas e agora quisesse apenas ser bem tratada, porém sem abandonar os direitos conquistados. Mas se for preciso escolher entre uma carreira e um casamento, Ana não ficará com nenhum dos dois”. Estamos no fim do século XX e do 2º milênio. Este “punctus” temporal não determina nenhum padrão social, mas a época de Ana é marcada pela incerteza. Não que as ideologias tenham morrido. No entanto, elas perderam o vigor e não motivam mais as grandes causas e lutas. De vez em quando, Ana se revolta ardorosamente com as injustiças e a alienação. Protesta contra elas sozinha, mas rápido tudo passa. Embora curse letras, ela não se entusiasma com o curso e com os professores, numa universidade constituída de edifícios feios em vasta área degradada. Os estudantes da época de Ana não sabem muito bem por que estudam. O que eles realmente desejam é fugir da família e desfrutar de liberdade. Nada de movimentos coletivos, de bandeiras a serem desfraldadas e de manifestos.
Ana ama Jaime, mas lhe avisou que “... não pretendia se cansar por mais nenhum amor. Seus esforços nunca seriam grandes em função de nenhum sentimento, pois se acostumou a esquecer aquilo que amava, caso fosse muito custoso lembrar”. Ana é ciumenta. Ela não tem a mínima preocupação em conter os seus sentimentos para se mostrar ‘cabeça’. Afinal, Ana não é mais da geração ‘hippie’. Nada de ‘paz e amor’ e desleixo com o corpo. Ana gosta muito do asseio corporal, porém seu grande desejo é descansar. Ela tem uma vontade imensa de dormir, mas não consegue. Poder-se-ia dizer que Ana é pós-moderna sem a consciência de sê-lo. Sua vida é fragmentada e ela sabe disso. “É fragmentando o cotidiano de uma pessoa que você a tem em mãos mais facilmente”, pensa.
A bem dizer, não apenas Ana tem os pés pequenos. A época em que ela vive padece de insuficiência de pés se comparada aos momentos históricos que alimentaram fortes convicções e certezas. A falta de perspectiva de seu tempo talvez explique sua admiração pelas épocas de pés grandes, como a da Grécia do século V antes de Cristo, com os pés firmemente assentados no chão, como tábuas e protegidos por sandálias cujas tiras sobem até os joelhos. Na bela carta que escreve para Jaime ao deixá-lo, Ana, além de falar da sua vida inútil, menciona seu hábito de ficar na cama pensando não ‘nos’ mas ‘sobre’ os seus pés e os pés de toda a humanidade. Parece não haver dúvida de que a metáfora anatômica do pé fala de Ana e do mundo em que vive. A personagem não chega a ser uma anti-heroína. Os anti-heróis têm perfil forte e bem delineado. Ana é, na verdade, a-heroína ou uma deseroína.
Com firmeza e agilidade, Fernanda Young conduz a escrita de “Vergonha dos pés”. Se os personagens parecem pós-modernos em seu comportamento, a narrativa revela um bom domínio da língua (muito embora encontremos um “haviam punhos de renda” e um “vingaria-se” inadmissíveis) e da técnica ficcional. Ela faz o romance avançar valendo-se de três instâncias narrativas: a de um narrador onipresente, a dos submonólogos e a dos diálogos. Constrói um discurso fragmentado e descontínuo, com cortes temporais, espaciais e psicológicos bem trabalhados. Suas idas ao passado e ao presente, antecipações de assuntos, avanços e recuos temporais intercalados fazem de Fernanda Young uma promessa da literatura brasileira.
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São Paulo 11/04/97
Adélia
Achei realmente interessantes as questões que você levantou sobre o meu romance Vergonha dos Pés. Quase quase você acerta todas as partes que eu mais gosto do livro – isso, se é possível um autor não gostar igualmente da obra inteira –; as que considero merecedoras de citação numa resenha. Muito lúcida a análise dos pés do ponto de vista da época em que o livro é escrito: “a falta de pés” de nosso maravilhoso e confuso e entediante e fútil fim de século. Eu mesma não havia atentado de forma tão clara a respeito do assunto. É que, enquanto escrevo, muitas coisas importantes são mais sutis do que eu posso dominar. É tanta coisa para escrever...
Em agosto, outro romance meu estará sendo lançado. Também pela Editora Objetiva. Está previsto para a Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Caso seja possível, apareça na tarde de autógrafos, que provavelmente será previamente anunciada.
Bom, espero que você não encontre nenhum erro em minha pequena carta, é que nem sempre é fácil fugir da complexividade da minha (nossa) belíssima Língua Portuguesa.
Um abraço
Fernanda Young

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