Crítica de cinema: Lembrança e esquecimento
*Edgar Vianna de Andrade 02/09/2019 16:14 - Atualizado em 09/09/2019 14:02
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(Yesterday) —
Em pelo menos dois filmes, Danny Boyle trabalha com a memória e o esquecimento, que, para os neurocientistas, são dois lados da mesma moeda. Não é possível lembrar tudo da história pessoal e social. Não é possível esquecer de tudo também. Em “Quem quer ser um milionário” (Slumdog Millionaire, 2008), um garoto da periferia da Índia, vivendo nas piores condições sociais, apresenta uma faculdade incrível de associar acontecimentos de sua vida às perguntas que lhe são feitas por um dos muitos programas de televisão que testam a memória e o grau de conhecimento dos seus participantes. Geralmente, é um festival de cultura inútil, mas pode render dinheiro.
Em “Yesterday” (2019), o esquecimento coletivo é a tônica do filme. Imaginem um blecaute de 12 segundos no mundo. O planeta poluído por iluminação se apaga, um músico medíocre é atropelado e acaba num hospital. Atônito, ele se dá conta de que os Beatles foram totalmente esquecidos pela humanidade. Não há mais registro da passagem deles em nenhum lugar do mundo. Jack Malick (Himesh Patel) é o único que não esqueceu. Então, o humilde professor de uma escola do interior da Inglaterra e músico medíocre começa a fazer sucesso como compositor e cantor, apropriando-se das músicas da grande banda.
Embora comédia romântica — gênero que começou muito bem com Ernst Lubitsch já na segunda década do século XX, contou com excelentes diretores e acabou se transformando em território melífluo da mediocridade —, “Yesterday” é antes de tudo uma provocação. Não deixa de ser uma comédia de casais, mas levanta a questão: como seria o mundo sem os Beatles? A Coca-Cola, o cigarro e Harry Potter também somem dos registros mentais e da memória artificial. Ninguém sabe mais quem são.
Se os Beatles não entrassem na história da humanidade e da música, ninguém sentiria falta deles. Mas a banda existiu e encantou o mundo com suas composições. Se ela fosse completamente apagada dos HDs humanos e artificiais, o mundo seria mais pobre, assim como aconteceria se esquecêssemos Bach, Stravinsky, Cole Porter, Pixinguinha, Villa-Lobos, Tom Jobim e outros artistas mais. Contudo, seria melhor sem Coca-Cola, cigarro e Harry Potter (podemos conservar Harry Potter como um mal menor).
Antes de tudo, “Yesterday” é uma homenagem aos Beatles. Quem cresceu ouvindo e amando suas músicas sente que o mundo do espetáculo atual se empobreceu muito. Hoje, vale mais a performance do que a arte. Não importa se a música é ruim e se o artista não tem talento. O que vale é o espetáculo, como bem mostrou a quarta edição do filme “Nasce uma estrela” (A Star Is Born, 2018). Se todos esquecessem a música pop que se compõe no mundo todo, o sertanejo urbano brasileiro e Anitta, o mundo não perderia grande coisa. Apenas quem não gosta de música sentiria a falta deles.
Os Beatles estão sendo esquecidos. Sendo substituídos por uma música medíocre e rasteira. Na fantasia, os Beatles não foram totalmente olvidados. Suas composições, da mais simples à mais elaborada, ainda encantam as plateias. Além de homenagem à famosa banda de Liverpool, o filme valoriza a profundidade de sentimentos, como mostra o casal formado por Patel e Lily James. Depois de um encontro de Malik com John Lennon (que não morreu), o impostor abandona seu temor de ser descoberto como plagiário e volta à vida simples de outrora, vivendo um amor humano. A humanidade não voltou a se lembrar dos Beatles, de Harry Potter, da Coca-Cola e do cigarro, apesar de Malik confessar em público que não era o autor das maravilhosas músicas. O roteiro e a direção não encontraram um final convincente para o filme.

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