O norte fluminense no século XVI
27/12/2018 19:03 - Atualizado em 03/01/2019 14:05
Não existia uma região com o nome de norte fluminense no século XVI. Mas existia uma entidade colonial com o nome de Brasil. Seus limites iam da linha de costa à linha do Tratado de Tordesilhas, que ainda era inatingível. As capitanias hereditárias se estendiam da costa à linha de Tordesilhas, mas os colonos se limitavam à costa, nos domínios da Mata Atlântica, da Caatinga e da Amazônia.
Passamos em revista as informações oriundas do século XVI sobre uma porção de terra que futuramente dará origem à região norte fluminense, designação criada no século XX. Ela foi denominada Distrito dos Campos dos Goytacazes, no período colonial. No império, as divisões administrativas dentro de uma província recebiam o nome de comarcas.Campos era a sede de uma. Na República, as divisões de um Estado receberam o nome de região.
Existem poucas informações deixadas por navegadores europeus no século XVI sobre as terras que hoje constituem parcialmente o norte fluminense. Levanto duas hipóteses para essa lacuna. Primeiramente, a dificuldade de encontrar porto seguro numa costa baixa e sem reentrâncias. Não há pedras nem enseadas favoráveis à ancoragem. Os rios, por sua vez, apresentam até hoje perigo para entrada e saída de embarcações por conta de suas barras instáveis. Segundo: o mito de que os habitantes nativos da região eram ferozes.
Estudos atuais mostram que as nações indígenas do norte-noroeste fluminense viviam em economias paleolíticas e neolíticas mínimas. Ultimamente, pesquisas efetuadas na Amazônia vêm revelando que o neolítico americano não pode tomar como modelo o euroasiático, como demonstra Eduardo Góes Neves no capítulo “Não existe neolítico ao sul do Equador: as primeiras cerâmicas amazônicas e sua falta de relação com a agricultura” (Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese”, organizado por Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt. Belém: IPHAN/Ministério da Cultura, 2016). Pesquisas arqueológicas na ilha maior do arquipélago de Santana mostram que os nativos viviam da coleta, da pesca e da caça, o que caracteriza um modo de vida paleolítico. O nomadismo, no entanto, era desnecessário pela abundância de recursos. No continente, a coleta, a pesca e a caça abundantes eram complementadas per uma escassa agricultura. As populações construíam assentamentos, fabricavam cerâmica e poliam pedra. Tratava-se de um neolítico mínimo decorrente de uma economia de subsistência.
Nos primórdios da colonização da baixada, os goitacás foram mitificados como um povo aguerrido. Antropófagos para uns, não antropófagos para outros; pescadores e caçadores para uns, já conhecedores da agricultura para outros; moradores em casinholas sobre estacas dentro de lagoas para uns, construtores de assentamentos em terra, como os outros nativos do Brasil; incendiários de florestas para uns; adaptados aos ecossistemas úmidos da baixada para a maioria dos estudiosos (Arthur Soffiati. Índios do norte-noroeste fluminense: a história de um extermínio. Inédito).
Sua economia era de subsistência (Ondemar Dias e Jandira Neto. Pesquisas Arqueológicas no Sítio do Caju. Campos dos Goytacazes, RJ: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2014), e não mercantil. Suas trocas não eram comerciais.
Não usaram o fogo sistematicamente para destruir as florestas da baixada, como afirma Warren Dean (A ferro e fogo: história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996). Estudos de palinologia, notadamente os conduzidos por Cynthia Fernandes Pinto da Luz, mostram que não havia florestas numa planície cheia de lagoas.
A planície entre 1500 e1534: notícias escassas
Quando os portugueses aportaram no Brasil, nem toda a costa mereceu atenção. Os representantes dos europeus atentaram para Pernambuco, baía de Todos os Santos, Cabo Frio, baía do Rio de Janeiro e São Vicente, na atual São Paulo. Em vão, tem-se procurado referências à planície fluviomarinha do futuro norte-fluminense. Nos diários de bordo e nos relatórios dos primeiros navegantes europeus pela costa brasileira, não há indicações sobre os primeiros trinta anos da chegada dos portugueses na planície dos goitacás. Se há, são insignificantes. A viagem de 1501 ao Brasil não traz qualquer informação, além do batismo do cabo de São Tomé (Moacyr Soares Pereira. A navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio. Rio de Janeiro: ASA Artes Gráficas, 1984). Os diários de Américo Vespúcio tampouco (Novo Mundo: cartas de viagens e descobertas. Porto Alegre: L&PM, 1984). O diário de navegação de Pero Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso de Souza, que o acompanhou, é notável na descrição dos pampas (Pero Lopes de Sousa. Diário de Navegação. Cadernos de História, volume I. São Paulo: Parma, 1979). Ela se estendeu de 1530 a 1532. Sobre o estirão de costa que virá a ser doado a Pero de Gois, existe no diário apenas um registro sobre os “baixos dos parguetes”, ponto de difícil localização futuramente.
O primeiro navegador francês a alcançar a América foi Binot Paulmier de Gonneville, em 1502-1503. Ele pretendia chegar às Índias Orientais, mas aportou em terras hoje correspondentes a Santa Catarina. De lá, trouxe um jovem nativo para a Europa, pretendendo devolvê-lo a seu povo. A promessa não pôde ser cumprida e o nativo formou imensa família na França. O relato de Gonneville foi publicado na íntegra por Leyla Perrone-Moisés (Vinte luas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992). A autora promove uma análise detalhada da viagem. M. d’Avezac, citado pela autora, defendia a hipótese de que Gonneville desembarcara em terra dos índios goitacás. A hipótese não tem sustentação.
Na cartografia, a América aparece pela primeira vez no planisfério de Cantino, de 1502. Ele é ainda bastante genérico. Com as navegações europeias no Atlântico e no Índico, a cartografia passou por um rico processo de expansão. O planisfério do genovês Nicolau Caveri também privilegia o geral. Selecionamos alguns mapas em que existe ao menos uma referência à região entre 1507 e 1534. O primeiro é o mapa-múndi do cartógrafo alemão Martin Waldseemüller, que batizou o novo mundo de América em homenagem a Américo Vespúcio. Ele data de 1507, figurando o topônimo Serra de São Tomé. Crê-se tratar-se do maciço do Itaoca, visto pelo navegante na altura do cabo de São Tomé. No mapa, sublinhamos o nome em azul.
O segundo é a carta náutica do cartógrafo Gaspar Luis Viegas, com data de outubro de 1534, ano limite da primeira parte deste artigo. Os acidentes geográficos estão grafados de forma invertida. Assinalamos o cabo de São Tomé.

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