Literatura estrangeira em 2016 (final)
Arthur Soffiati - Atualizado em 21/09/2017 18:41
Completando os comentários sobre as leituras que fiz de literatura estrangeira em 2016, menciono “A filha perdida” (Rio de Janeiro: Intrínseca), da misteriosa escritora italiana Elena Ferrante. Misteriosa porque ela nunca foi vista. Esse mistério aumenta a venda de seus livros, comumente girando sobre um mesmo tema. Neste, ela relata a vida de Leda, professora universitária de meia-idade, mãe de duas filhas crescidas que vivem com o pai em Toronto. Ela passa férias numa cidade litorânea do sul da Itália. O local propicia-lhe um turbilhão de recordações. Prestando atenção numa grande e espalhafatosa família napolitana, ela pensa em si mesma, pois se identifica com Nina, jovem mãe e membro da família, e sua filha pequena. Praia, crianças e bonecas aparecerão em outros livros seus.
Comentando um de seus livros, a escritora brasileira Tatiana Salem Levy revelou grande entusiasmo com Ferrante. Tatiana, de fato, é muito entusiasmada. Eu nem tanto.
Em língua inglesa, foram muitas as minhas leituras. Começo com “O vento da noite” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), de Emily Brontë, imortalizada pelo seu célebre romance “O morro dos ventos uivantes” (1847), tantas vezes levado ao cinema. “O vento da noite” não uiva tanto. É uma coletânea de poemas feita por Lúcio Cardoso e republicada sem qualquer modificação. A edição é bilingue. Brontë é uma típica autora do romantismo, a começar pelos títulos dos livros. No poema “O filósofo”, ela é sombria: “Não faz muito tempo,/No mesmo lugar em que estás agora, ó pobre mortal,/Um espírito me apareceu.../Em torno dos seus pés fugiam três rios/Da mesma profundidade.” Tempo, morte, florestas são assuntos típicos do romantismo. Lúcio Cardoso recria os poemas, sem se prender a rimas e a metros.
William Hope Hodgson escreveu livros na fronteira da ficção científica e do terror. Sua obra exerceu influência sobre H. P. Lovecraft e Alfred Hitchcock. Em “A casa à beira do abismo” (Campinas: Papirus 7 Mares), a narrativa é escrita na primeira pessoa e também provém de um manuscrito. O próprio título do livro já sugere o fantástico, o sobrenatural. O narrador se encaminha para a perda progressiva da sanidade mental. O sobrenatural é sugerido com o deslocamento do real para o fantástico. Hodsgon viveu entre 1877 e 1918. Como dedicatória, ele escreve um poema a seu pai, de certa forma anunciando o conteúdo do livro: “Ao meu pai/(Cujos pés pisaram eras perdidas)/Abre a porta,/ E escuta!/Urros só os ventos abafam,/E cintilam/Lágrimas em torno da Lua./E de adorno, os passos/De sumidos sapatos –/Noite afora com os mortos/Shhh! Escuta o/Pesaroso choro/Do vento no escuro./Silêncio e ouve, sem cicio ou murmúrio,/Os pés a pisar eras perdidas./Ouve o som que a morte te iça./Silêncio e ouve! Silêncio e ouve!/Os pés dos mortos.” A prosa toca as raias do absurdo e ponto de se tornar caótico e não deixa de evocar a atmosfera do romantismo.
Virgínia Woolf vem merecendo relançamentos. “O sol e o peixe (prosas poéticas)” (Belo Horizonte: Autêntica) reúne ensaios impressionistas, por assim dizer. Ensaios em que ela comenta sem o rigor do estudioso a obra de Montaigne, memórias da filha Leslie Stephen, o exercício da filosofia, sua paixão pela leitura, pela pintura e pelo cinema. Escreve, como alguns autores, sobre a criatividade nos momentos de doença: “a Natureza (...), no fim, vencerá; o calor abandonará o mundo; enrijecidos pela geada, deixaremos de arrastar os pés pelos campos; o gelo se estenderá, em grossas camadas, sobre fábricas e máquinas; o sol desaparecerá.”
Londres, claro, não pode ser esquecido por uma autora que amou a cidade. Em “Flanando por Londres”, ela fala sobre a parte do corpo que a conduzia em suas caminhadas: “Estava pensando que os pés são, afinal de contas, a parte mais importante de uma pessoa; há mulheres, dizia para si mesma, que foram amadas apenas por seus pés. Nada vendo além dos pés, talvez imaginasse que o resto do seu corpo combinava com aqueles belos pés.”. “Anoitecer sobre Sussex: reflexões no interior de um automóvel” é também uma declaração de amor.
Lançado em 1986, chega ao Brasil “Foe” (São Paulo: Companhia das Letras), do sul-africano J. M. Coetzee. Trata-se de ficção densa. Susan Barton é abandonada numa ilha por amotinados de um navio, voltando da Bahia, onde foi procurar sua filha. Na ilha, encontra Robinson Cruso, que vive com Sexta-feira, um homem negro que não pode falar por terem lhe cortado a língua. Estamos no início do século XVIII. O irascível Cruso mantém relacionamento sexual com a estranha. Ele se acomodou a sua vida e não quer mais sair da ilha. No entanto, os três acabam resgatados um ano após a chegada dela. Cruso não resiste e morre. Ela procura um escritor para narrar sua história. Encontra o problemático Daniel Foe.
É a história de Robinson Crusoé reinventada. O fulcro nem está na vida solitária na ilha, mas no conflito entre as narrativas. Barton deseja fidelidade aos fatos, enquanto que Foe pretende escrever a história a seu modo. Pode-se depreender que um romance não é jornalismo. Ao mesmo tempo, o mercado impõe histórias fantasiosas.
O grande ficcionista inglês Ian McEwam escreve talvez seu mais criativo livro. “Enclausurado” (São Paulo: Companhia das Letras) conta a história de uma criança ainda na barriga de sua mãe. Ela se separou do marido e se tornou amante do cunhado. Ambos tramam matar o pai da criança. Romance shakespeariano, ele já foi comparado, no Brasil, a “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Enquanto espera seu nascimento, a criança acompanha tudo no útero da mãe. Odeia o amante e age a favor do pai. Quando os amantes têm relações sexuais, a criança entra em pânico. “... temo que ele rompa a barreira, perfure os ossos ainda moles de meu crânio e irrigue meus pensamentos com a essência dele, com o creme abundante de sua banalidade.”
Nos momentos mais tranquilos, o bebê reflete sobre o estado do mundo, da crise ambiental, do Oriente Médio, do pensamento de Hobbes. “Construímos um mundo complicado e perigoso demais para poder ser administrado com o temperamento aguerrido que temos. Em meio à desesperança, muitos veem saída no sobrenatural. Estamos no crepúsculo da segunda Idade da Razão.”
Dos Estados Unidos, chegam dois livros. O primeiro é “Os fatos” (São Paulo: Companhia das Letras), autobiografia do escritor Philip Roth. Ela é endereçada a Zuckerman, personagem fictício que, ao final, escreve severas críticas ao livro. É o que se salva. É a crítica que eu desejava fazer e que Roth faz aos leitores que esperavam dele uma vida mais rica, menos maçante, menos monótona, menos frívola, bem classe média judia dos Estados Unidos. Nenhum episódio é marcante e Roth é consideravelmente narcisista para valorizar sua biografia.
Mas nos chega também “O fim da história” (Rio de Janeiro: José Olympio), de Lydia Davis. O leitor comum como eu vence as primeiras páginas com certo esforço, como uma prova a ser vencida para chegar a compreender a ficção. Ela narra um caso de amor do passado na primeira pessoa, narrando também os problemas de construção da narrativa. Trata-se de uma mulher que vive um romance obsessivo com um homem 12 anos mais novo. Muito tempo depois, ela escreve um romance que mistura esquecimentos, dúvidas, questionamentos, anotações. O que está em questão é a memória. Davis se insere na linha de Proust, embora não tão genial quanto o francês. “... tentei escrever partindo das partes monótonas para depois curtir as partes interessantes quando as alcançasse. Mas em todos os casos eu passava pelas partes interessantes sem notar, o que me levava a pensar que, afinal, elas não eram tão interessantes assim. ” Romance repleto de lapsos que vai merecer uma atenção especial minha em outro momento.
Por fim, a seleção de poemas da polonesa Wislawa Szymborska “Um amor feliz” (São Paulo: Companhia das Letras). Ela ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1996. Uma coletânea sua já havia sido publicada em “Poemas” (Companhia das Letras, 2011). A poeta trata de temas como a indiferença do universo, a incomunicabilidade entre os homens e entre os humanos e as outras formas de vida. Não sei se são bons poemas em polonês (as duas edições são bilingues e não sei ler polonês). Em português, o resultado não foi dos melhores.

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