Mário de Andrade e os novíssimos
Arthur Soffiati 24/08/2017 18:50 - Atualizado em 28/08/2017 14:13
Mario de Andrade
Mario de Andrade / Divulgação
Fico pensando em Mário de Andrade no final da vida (ele morreu com 51 anos em 1945), diante das novas tendências estéticas e dos novíssimos autores. Mário sempre se interessou pelos jovens e lhes deu apoio. Mas, qual teria sido a sua atitude diante do regionalismo mágico de João Guimarães Rosa, do construtivismo árido e social da poesia de João Cabral de Melo Neto, que oculta o eu poético da maior forma possível? Diante do surrealismo de Murilo Rubião e do intimismo de Clarice Lispector?
Guimarães Rosa ganhou um prêmio por “Magma”, seu único livro de poesia, em 1936. Mas ele só foi publicado depois da morte do autor. “Sagarana”, seu primeiro livro de contos veio a lume em 1946. Mário já havia morrido. João Cabral de Melo Neto fez um desabafo magoado sobre o então consagrado escritor: “O Mário de Andrade... Uma vez eu estava com o Breno Accioly no Rio de Janeiro, em 1944, e o Acciolly disse: ‘Você quer conhecer o Mario de Andrade? Ele está aí no Hotel Natal, na Cinelândia’. Eu disse: ‘Vamos’. Eu já tinha publicado dois livros e havia mandado para ele. O Breno me apresentou a ele... o Mário de Andrade não fez a menor referência. A indiferença dele pela minha pessoa era um negócio, tanto que uma das coisas que eu acho mais engraçadas é que tenho a impressão de que sou o único poeta da minha geração no Brasil que não recebeu uma carta de Mário de Andrade, que não há nenhum sujeito em Bodocó que não tenha mandado um livro para Mário de Andrade, para quem ele não tenha escrito. Ele nunca me mandou uma palavra, e quando me conheceu, era como se eu fosse o caixa do açougue”. (Folha de São Paulo, 24/04/1987).
Os jovens enviavam seus livros e escreviam a Mário sempre esperando leitura, artigo ou carta do autor de “Macunaíma”. Em 1944, ele já estava cansado, doente e beirando a morte. Era exigir muito que ele respondesse a todas as cartas que recebia. Hoje, sabemos que ele escreveu mais de sete mil cartas para Deus e o mundo. Otto Lara Resende observou que os jovens arrancavam cartas de Mário e as exibiam como troféu. Mas ele ainda pôde dar atenção a Murilo Rubião, que só publicou seu primeiro livro em 1947. Contudo, ele já tinha contos escritos enviados a Mário. Os dois trocaram cartas (“Mário e o pirotécnico aprendiz”. São Paulo: IEB/USP; Giordano, 1995). Por sua vez, Mário era organizado e guardava todas as cartas que recebia, ainda que fossem escritas por um “caixa de açougue”.
Creio que Mário tivesse dificuldades em lidar com o surrealismo, com o objetivismo e com o intimismo. Não haveria problema, creio eu, com o novo regionalismo de Guimarães Rosa, pois Mário era um grande defensor dele. Houve discussão entre Murilo Rubião e o paulistano, mas creio que ela foi absorvida pelo grande escritor. Não sei o que dizer quanto a João Cabral. Com relação à Clarice Lispector, sei que Mário leu “Perto do coração selvagem”, publicado em 1943. A autora enviou um exemplar para ele. Pude examiná-lo no seu acervo, sob guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Só encontrei algumas frases sublinhadas indicando leitura, mas nenhum comentário. Cheguei a escrever um artigo sobre a relação dos dois sem nada poder afiançar.
Mas eis que Mário gostou muito do livro. Tanto que escreveu uma carta a Clarice, que morava em Belém do Pará àquele tempo. Misteriosamente, a carta se perdeu no Café Central e nunca chegou à destinatária. Ela foi encontrada por Hermes Cardoso e publicada na revista literária “Polichinelo” (Belém, nº 12, agosto de 2010). É essa carta que divulgo aqui.
“Mademoiselle Clarice,
Escrever é um ato de provocação, mesmo se o que escrevemos não tem intenção ou utilidade alguma. Esse ato transfigurador é como a brisa suave do Zéfiro que sem propósito algum participa da erosão das formas, cria a cegueira ou alivia a secura do tempo. Digo isto porque és, sem desejar, o movimento que fez hoje eu ser o que nunca fui. És também responsável pelas olheiras que trago agora em minha insônia de arrebatamento, pétalas de rosas escuras de inodoro perfume. Comecei a ler “Perto do coração selvagem” ontem à noite e não parei até que tivesse sorvido o último gole. Estou embriagado e o espelho mostra minha face cansada, mas realizada, como se eu próprio acordasse na caverna de Hypnos cercado por suas papoulas do eterno sono.
Depois, já de manhã, fui vencido novamente pelo sono e ao acordar, já quase meio-dia, de chofre pensei: tenho que escrever a ela! E pensei várias vezes, ainda, como saudá-la: Senhorita ou Senhora? Soube que tens entre dezenove ou vinte e poucos anos, e sou daqueles que acredita que relacionar a obra à idade do autor nos dá pistas para predizer o futuro. Sabemos se o escritor está no ponto ou se nunca vai atingir o ponto. Isso não quer dizer que a fórmula é apenas questão de tempo, pois vinho mal feito o envelhecimento não melhora, mas a idade do autor é mais um parâmetro a ser utilizado dentre tantos. Por isso a dúvida: Qual saudação apropriada para esta carta? Senhorita ou senhora? Ainda trago o cansaço da leitura que me exigiu desprendimento. É como aquelas árduas tarefas de identificar códigos subterrâneos, tesouros submersos, onde o terreno ornado de dissimulação nos diz: é mais profundo. Escrita madura de uma jovem escritora. Então como devo cumprimentá-la: senhorita ou senhora? Ou até menina!
A menina Joana parece adulta demais, precoce. A adulta Joana às vezes reage como menina. A memória dessa única personagem, cuja onipresença enche as páginas do inicio ao fim, me confirma um pensamento vadio que reza: a memória é a única grande religião de toda a humanidade, dos crentes ou descrentes, ou talvez é a mais verdadeira, pois é a única que realmente nos ata a tudo que existe, esquecer é desligar, desatar. Pode parecer estranho para você que teu despretensioso romance me leva a isso, se pensar que é um ledo engano não importa quando publicamos perdemos qualquer autoridade sobre o que escrevemos. Continuemos (...)
Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 1944
Vosso súdito, Mário de Andrade”
Como se vê, Mário não perdeu a humildade e a gentileza depois de se tornar celebridade.

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