alguém vai ajudar
- Atualizado em 24/08/2017 11:08
chuva e esperança
chuva e esperança / google
Alguém vai ajudar
Cândida Albernaz
Minha filha olha este aguaceiro entrando por baixo da porta. Pega logo o saco de areia. Ai meu Deus, não quero morrer afogada.
Nem posso ajudar. Entrevada nessa cama há tantos anos. Por que as pernas não me obedecem mais?
A bacia aqui no quarto está cheia e vai transbordar. Joga fora essa água. Tantas vezes ficamos sem uma gota em casa para preparar a comida ou lavar a roupa. E agora esse esbanjamento. Quando foi que pensei que ia mandar jogar água fora?
Lembra-se daquela semana em que você andava até o poço na outra rua e enfrentava uma fila danada, só para conseguir um balde? E era preciso que durasse bastante. Sempre gostei de ser limpinha e, no entanto tive que ficar sem banho por três dias, só lavando as “partes”.
A goteira está em cima do rádio. Tenho pena de você, agindo tudo sozinha e eu aqui sem prestar para nada.
E essa chuva que não para? Vou rezar mais uma vez porque é só o que posso fazer.
Pede ajuda ao vizinho. Ele é forte, empurra o fogão e a geladeira para um lugar mais seguro. Do jeito que está entrando água vamos perder tudo. Tanto sacrifício.
Não fica aí parada me olhando. Ele não está mais em casa? E os outros? Será que se esqueceram de nós?
Está chegando à altura do colchão. Não tem jeito. Sai e pede ajuda. Vai logo, porque eu não queria falar, mas estou com um medo danado. Chora não, filha. Anda logo e volta com alguém.
Necessito que me carreguem. Nunca odiei tanto as minhas pernas. Sabia que já foram bonitas? Seu pai se encantou por elas. Dizia que na nossa região não existiam mais perfeitas. E não é para me gabar, mas ele tinha razão. Usava uns vestidos curtos, não como os de hoje, que são uma indecência, mas o suficiente para que de vez em quando aparecessem os joelhos. Agora estão mortas, arriadas nessa cama, finas e sem forma.
Desculpe filha. Você precisando ir e eu falando do passado.
Não, nem pense em tentar me levar sem ajuda porque não aguenta.
Vai logo, estou sentindo o colchão molhado. Não se preocupe em que eu fique sozinha porque não vai adiantar. Corre o mais rápido que puder e volte logo.
Ajude minha menina, Senhor, que nós não merecemos passar por isso. Nunca fiz mal a ninguém, e nem ela, coitada. Nem casar, casou, para ficar cuidando dessa velha aqui. Coração bom está ali. Ela está com medo que não dê tempo para me tirarem daqui. Eu também, Senhor, mas vou encontrar forças, se for preciso.
Já me arrastei para a cabeceira da cama, mas não adianta. A água subiu ainda mais. Essas pernas imprestáveis estão cobertas. Estão geladas e começo a sentir frio. Vou fechar os olhos porque não quero nem ver.
O que é isso? Soltem. É muita mão me puxando.
Filha, você conseguiu. Obrigada por estar comigo.
Perdemos tudo, meu Deus.
Não chora meu amor. Deus vai ajudar a gente. Não sei como, mas vai.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".