A vida que acontece entre dois cortes de cabelo
Ronaldo Junior - Atualizado em 17/12/2022 09:46
Fonte: Pixabay.
Tenho sempre a impressão – e estou convicto do quão insólita ela é - de que os dias se passam abalizados pelos cortes de cabelo.
 
Você pode estar pensando: “ah, esse texto é só uma enrolação aleatória para fugir dos clichês de final de ano”, mas não é apenas isso. Se trata de uma filosofia oculta, à espreita, pronta para ser desenredada pelo primeiro filósofo de esquina capaz de notar suas vertentes axiológicas.
 
Isso porque a visita ao barbeiro funciona como uma espécie de limiar que inaugura um novo tempo para além do mero aparar dos pelos que me alargam a testa e já me faltam no cocuruto. Então o homem com a tesoura e o pente deixa de ser um profissional comum para se tornar, na verdade, uma espécie de guardião desse limiar que permite inaugurar uma nova aventura.
 
Estou viajando? Talvez. Mas este texto tem uma razão de ser, e ela parte do fato de eu sempre me colocar a refletir quando preciso ir ao barbeiro. E aqui vão meus motivos.
 
Tal estado de espírito se inaugura porque reluto ao corte: eu seria capaz até de aderir a uma coleção de chapéus para adiar essa situação. Primeiro, pelo claro fato de ser uma inconveniência sair de casa com a finalidade única de sentar numa cadeira e deixar que uma tesoura fique zanzando pela minha cabeça. Segundo, por sentir uma estranheza na relação que une dois completos desconhecidos que se encontram periodicamente para... um corte de cabelo!
 
Partindo dessa lamúria cabeleireirística, passei a compreender que o corte, além de algo íntimo – apesar de feito despudoradamente à luz do dia -, é também simbólico pelo gesto de se despir de algo inerente a si para dar espaço a outro ciclo, o que é consumado na varredura dos chumaços que ficam pelo chão.
 
Desde quando criança, tenho esse peculiar incômodo sobre a barbearia, as relações sociais que se criam nela e o fato de alguém estar a todo tempo controlando os movimentos mecanizados do meu pescoço sob a ameaça de um objeto cortante. Mas permaneço a precisar dos serviços, afinal, mesmo que hoje me falte cabelo em algumas áreas do coco, contraditoriamente as áreas cranianas em que ele ainda me sobra insistem em se tornar ambiente de trabalho do barbeiro.
 
Qual a jornada do herói, penso a exoneração capilar como o encerramento de uma trajetória para dar início a outra aventura marcada especificamente pelo monstro do limiar – o barbeiro – e pelo mentor que me guiará nesse início de trajetória – posso aludir a algum papeador que esteja na cadeira ao lado pronto para lançar um não solicitado conselho de vida.
 
Como para qualquer pessoa, abrir ciclos é sempre desgastante, daí tanta relutância minha para um rotineiro aparar de fios. Daí tamanho estranhamento quando me deparo com pessoas que se sentem tão à vontade no barbeiro que são capazes de passar horas nos ambientes cada vez mais gourmetizados que as barbearias estão virando – tudo para ocultar a amolação que é essa obrigação de se sentar na cadeira e fazer um breve e desinteressante comentário sobre o calor que está fazendo.
 
Para exemplificar a dificuldade das relações sociais na barbearia, preciso dizer que, quando conheci o atual responsável pelo exaurimento dos meus ciclos capilares, ele puxou papo falando sobre como é bom andar de bicicleta. Detalhe: eu não sei andar de bicicleta – calma, isso é tema para outro texto -, o que fez com que o assunto, já fadado ao fracasso, minguasse antes mesmo de nascer, mas com a desgastante necessidade de eu explanar o porquê de não saber me equilibrar em um eixo com duas rodas. Seria preferível um comentário sobre o calor lá fora, sem dúvidas.
 
Fato é que sempre acabo cedendo e me rendo à necessidade da tesoura para cortar o cabelo que ainda me resta e dar início a um novo ciclo – marcado por fios que insistem em parar de crescer toda vez. E todo o resto é intervalo enquanto o corpo humano faz seu silencioso processo de multiplicação para ser aparado e repetir tudo novamente. E disso somos feitos: intervalos de vivências entre uma ida e outra.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.