Conviver com a ficção
Ronaldo Junior
Fonte: Pixabay
 
Tem gente que resolve mergulhar numa trama com o objetivo pontual de fugir da realidade, se permitindo ler um livro ou ver um filme sob o raso olhar que dissocia a trama do mundo factual. Decerto, tal leitura de uma obra não vai se desdobrar em debates ou reflexões sobre o que se quis dizer com certa cena, uma vez que se pautará apenas em “assistir por assistir” ou “ler por ler”.

Mas a verdade é que as tantas camadas de uma obra de ficção podem ser acessadas a partir de uma breve comparação entre elas e o que está, por exemplo, nos jornais. Até a ficção fantástica possui correlação intrínseca com a realidade. Não porque os seres humanos ganharão super força ou habilidade de voar, mas porque a referência fundamental de qualquer ficcionista é a realidade humana.

Isso, por si só, é algo fácil de perceber.

Mais fácil ainda é notar que as ficções comprometidas com a dinâmica do mundo real criam um pacto com o leitor/espectador no sentido de não fugir do que se considera real, palpável aos seres humanos e seus sentimentos. Porque a ficção sempre traz um balanço entre o que vivemos e o que imaginamos e sentimos, demonstrando as humanidades de diversas formas numa linguagem metaforizada.

Diante disso, surge uma problematização pertinente: ao apresentar mazelas cotidianas, intolerância, discriminação ou qualquer forma de violência real ou simbólica, a obra de ficção estaria fazendo uma apologia ou apenas replicando o mundo real?

Depende. A forma como a ficção apresenta a realidade pode soar como elogio ou reprovação a depender do público a que se destina e do contexto em que a ação é colocada. Uma cena de agressão, por exemplo, pode gerar empatia e, por meio dela, reflexão sobre o que muitas pessoas sofrem cotidianamente, de modo a criar um paralelo com as vivências e com o que se conhece da sociedade.

A partir disso, é intrigante ouvir de algumas pessoas que o fato de um filme de cinco anos atrás – com a flagrante proposta de ser caricato – ter como personagem um vilão pedófilo é apologia ao abuso sexual de crianças, o que parece, no mínimo, ser um sério problema de interpretação ou de caráter – a menos que a ideia seja fazer marketing para que mais pessoas vejam o tal filme, o que, é claro, está ocorrendo.

Tal confusão, por mais estarrecedora que seja – gerando, inclusive, uma decisão autoritária de censurar o filme do Gentili – expõe a grave crise de realidade que vivemos. Isso porque acreditar nas narrativas vendidas como se realidade fossem provoca uma falsa percepção sobre o atual estado das coisas e, principalmente, confunde muitas pessoas sobre o que é fictício ou não, como se vivêssemos numa espécie de alucinação em que realidades paralelas se colidem, e o palpável, o que se vê na vida diária, fosse mera invencionice.

Nessas invencionices, o ódio e a intolerância se alastram, pois é ignorada a existência das violências e pressões geradas pela vida em sociedade, ampliando muitas formas de agressão por desconsiderar que alguns assuntos existem e precisam ser debatidos.

Isso se apresenta, por exemplo, numa comédia ridícula, e certas pessoas tentam flagrantemente abafar a vilanização de um pedófilo sob o discurso (falso) moralista de que se trata de uma apologia. Mas, se você notar, viver um conto de fadas pode ser uma apologia à completa ignorância sobre o que se passa fora do castelo encantado – no mundo real.

A verdade é que essa crise de realidade, entre tantos absurdos vividos – dos preços disparados às manifestações insanas do chefe do Executivo –, chega a tornar plausível questionar a ficção por apresentar algo que, aterradoramente, existe na realidade.

*Ronaldo Junior tem 25 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Ronaldo Junior

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.