Artifici(re)alidade
Ronaldo Junior 12/03/2022 14:00 - Atualizado em 18/03/2022 22:32
Fonte: Pixabay
 
Levemente flexionado para baixo, o pescoço deixa pender a cabeça na direção da tela, que desequilibra o corpo para se colocar em reverência à informação virtualizada na palma da mão, que passa a ter em sua extremidade não apenas os dedos, como também uma entrada para outra dimensão.

Cercado pelo vazio da bolha construída ao seu redor, o indivíduo se autocentra na oportuna negação de olhar para o lado, preferindo se cegar com o brilho de sua própria reflexão – devidamente regulado de acordo com o ambiente por uma série de sensores.

E o ser humano – que é carne e espírito, mas também é perfil na rede social – constrói os mecanismos de sua constante transfiguração, dissolvendo a humanidade de si em pequenas experiências sócio-virtuais que se propõem a simular o mundo real.

Os escassos indivíduos ainda não curvados ao digital, estando alheios a tudo e passando por antissociais, abrem mão do ilusório processo socializador dessa realidade paralela, que foge ao simples abrir dos olhos, pois tais órgãos passam a ansiar por luz e palavras e áudios visuais que possam saciar a necessidade latente de viver fora de si.

Só que o digital se faz paulatinamente inevitável para o corpo, que se molda aos hábitos e gestos e trocas que se mostram mais facilmente à disposição, no conforto dos olhos e do passatempo oportuno – o que flexiona até mesmo os mais resistentes a se curvar.

Com isso, olhar para baixo e se perder nos pixels é visto como uma forma fácil de sair da realidade com o intuito de entrar em outra – mais volátil, talvez -, que tem como proposta ser extensão desta, de modo a projetar os elementos sensórios como se fossem naturais, enganando o cérebro para envolver seus hábitos e criar rotinas gatilhos desejos interpretações cercados pelo sentimento de fuga deste mundo – que pode ser livre, mas o é no cárcere das individualidades conflitantes.

E as informações que chegam, no estopim das notificações atrativas, são banalidade misturada com bulhufas, oportunidade plena de preencher o tédio com a necessidade inexistente de ver o mundo a partir de vozes que o desfragmentam. Tudo devidamente personalizado de acordo com a curtida deixada, com o conteúdo consumido nos dias an(in)teriores, para que o viajante de realidades paralelas se sinta identificado com o que lê, disposto a passar horas naquele ambiente controlado pelo percentual da bateria e a intensidade do wi-fi.

Dia após dia, a sensibilidade humana, enganosamente engambelada pelas artificialidades criadas pelos próprios seres sensíveis, se deixa ser empacotada em uma carcaça robótica, perdendo sua natureza a partir disso, mas mantendo a essência oculta, intocada. Mesmo que a inventividade humana seja capaz de ir muito além desta realidade cartesiana, a artificialidade permanece falsa, por mais convincente que seja sua simulação de natureza.

Assim, a menos que a cabeça que pende sobre a tela perceba tal simulação e entenda que o pôr-do-sol não é uma foto do pôr-do-sol, a contemplação estará esfacelada no metaverso que se acredita realidade e se constrói na vontade humana – quase invencível – de fugir de si.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.