Manifestação na Rua Direita
Edmundo Siqueira 02/11/2022 20:52 - Atualizado em 02/11/2022 20:55
O centro da cidade já era movimentado naqueles dias. Mais de 25 mil moradores na Vila. A rua Direita era uma das principais.

— Aquele negro, o Patrocínio, não pode ganhar. Não podemos deixar! — falava José Carneiro na sede da associação dos produtores. Era o presidente.
— Ele teve a petulância de vir aqui, aquele encostado. Nós do setor produtivo não podemos deixar essas ideias dele crescerem — reforçou Gregório, vice de Carneiro.

A reunião tinha cerca de 30 pessoas. Alguns comerciantes, donos de engenhos e dois ou três camaristas. A pauta principal era a organização de uma manifestação de rua. A ideia era obstruir a rua Direita e fazer com que a notícia chegasse até o Rio de Janeiro. Alguns presentes não estavam totalmente convencidos de que aquele era o melhor caminho.

— Deixe-me falar, Carneiro. Não acho que seria o melhor a fazermos. Veja, se essa ideia crescer mesmo e passar a ser uma lei do Império, teremos que aceitar. É assim que funciona — disse Alberto, grande fazendeiro de Campos que vendia sua produção para várias regiões.
— Ah sim, tá bom! Vamos aceitar que essas ideias cheguem às nossas famílias? Isso vai destruir nossos negócios e vão tomar nossas terras! — respondia o presidente.
— Não há indicativo disso, Carneiro. Faça-me o favor. Está mais que na hora de deixarmos as coisas mais civilizadas por aqui.
— Você virou para o outro lado Alberto? Está apoiando o liberalismo agora?
— Não virei para lado nenhum. Estou apenas ponderando sobre o que está acontecendo.
— O que está acontecendo é uma revolução! Não percebe? O liberalismo vai comandar as coisas se a gente deixar. Tem um monte de liberal aí querendo tomar o poder. Deus está do nosso lado, nossa bandeira jamais será só amarela!
— Você está enlouquecendo, Carneiro. O Brasil não vai se tornar liberal, nunca chegou perto disso. Aliás, somos um Império. Talvez tenhamos uma República daqui a uns anos, mas nada além disso. Então…
— Estão vendo, além de liberal é um republicanista! — o presidente da associação interrompia o interlocutor — Alberto, você que enlouqueceu, essas andanças suas na Europa estão deixando você doido. Quer perder suas terras? Vocês querem perder suas terras e suas casas de comércio, senhores?

Os presentes fizeram barulho, e o diálogo ficou impossível. As bandeiras, as faixas e os panfletos para a manifestação já estavam prontos e começaram a ser distribuídos. “Vão! Peguem o que puder, vamos para a rua!”, gritava o presidente Carneiro.


Alerto ficou perplexo. Seus colegas, associados que ele respeitava, comerciantes que antes eram educados e cultos, agora pareciam pessoas raivosas, cegas pela incitação a que estavam expostas.

As duas bandas do grande portão de madeira da associação foram abertas e os agora manifestantes, saíram em marcha pela rua Direita. Iam conclamando outros, com palavras de ordem e distribuição de panfletos contra o liberalismo e a República.

Alberto ficou no interior da associação. Com as duas mãos na cintura, de cabeça baixa. Tirou, então, o chapéu que vestia e o colocou apoiado ao seu peito, como se rezasse pelos pares que saíram para a manifestação. Um dos panfletos havia ficado no chão e Alberto pisava nele. Ao perceber, se abaixou para ler o conteúdo.

Vamos dizer NÃO ao liberalismo! Abaixo a Lei Eusébio de Queiroz! Querem transformar nosso país em uma Inglaterra! Acabaram com o suprimento de escravos da África dizendo que a "economia veríamos depois", e está aí resultado: crise e fechamento de comércios e engenhos.
Não podemos permitir os movimentos abolicionistas, queremos nossa liberdade e o direito a nossas propriedades. A escravidão é a base de nossa economia! Vamos lutar em nome de Deus, da pátria, do Império e da família!”

Alberto ficou assustado e não entendia como aqueles homens de bem estavam lutando por aquilo. Achava a escravidão uma perversidade que não cabia mais naquele tempo. Na verdade, nunca caberia em tempo algum. Viu muitas mortes desnecessárias, sofrimento e fome. Era preciso combater, e não apoiar aquele estado de coisas que estava ficando insustentável.

Enquanto ainda ouvia os manifestantes fecharem a rua, pegou um papel em branco na gaveta da mesa onde fora a reunião e começou a escrever uma longa carta, que seria endereçada ao Rio de Janeiro. Nela, escrevia sobre tudo que via naquele dia e fazia ponderações sobre os caminhos que a população de Campos estava tomando. Como frase final, se despedia do destinatário e fazia um apelo:

“Resista, José Carlos do Patrocínio, resista. Você há de vencer. Precisamos recuperar a humanidade e a sanidade nessa nação. O Brasil precisa - pelo bem de todos, não apenas dos escolhidos”.
 

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