A quem interessa o Solar dos Airizes ir ao chão?
- Atualizado em 03/12/2021 09:24
Foto: Rodrigo Porto
Foto: Rodrigo Porto
As questões que envolvem o Solar dos Airizes — construção histórica às margens da BR-356 Campos-Atafona — são essencialmente de cunho cultural e de formação de identidade. Mas que há anos transcenderam e foram parar na justiça. O Solar, desde 2013, é um caso de descumprimento de decisão judicial transitada em julgado. Explico.
O tombamento de uma propriedade privada sempre é um ato extremo. É, na prática, o Estado impedindo alguém de exercer plenamente seus direitos sobre uma coisa. No caso em tela, um imóvel. Porém, além do fato de ser regulamentado em lei, tombar algo significa (ou deveria significar) proteger um bem que possui alto valor cultural, histórico, arquitetônico ou artístico. O Solar dos Airizes possui todos esses elementos encrustados em suas paredes e ruínas.
Um dos maiores marcos patrimoniais da nossa região, o Solar foi inicialmente ligado aos jesuítas, transformado em um grande engenho pelo comendador Claudio do Couto e Souto, e depois veio a ser residência de um dos campistas mais ilustres, Alberto Lamego. O edifício guarda ainda a lendária história da Escrava Isaura, do romance homônimo de Bernardo Guimarães.
Mantê-lo de pé é essencial para que possamos entender a história regional. Usá-lo como estratégia de educação patrimonial é primordial para formamos o pensamento crítico sobre nosso passado. Transformá-lo em um museu é fundamental para que gerações entendam os processos que construíram a região, em suas glórias e mazelas. E tudo isso pode ainda gerar alto valor turístico.
Mas voltemos à questão jurídica. Como imóvel tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde os anos 1940, a exigência era preservar — acervo, arquitetura e entorno. Com a morte do patriarca Lamego, e com o fim do uso econômico ou residencial do Solar, o abandono foi inevitável. O Iphan procurou exigir dos proprietários à preservação do bem tombado, inclusive com a imposição de multas pesadas. Mas é preciso levar em conta que preservar e restaurar uma construção daquelas proporções envolvem custos altos. Ora, se o valor é coletivo, cultural, é possível que seja justo que o Estado preserve. Mas não é o que diz o ordenamento jurídico sobre o tema. A responsabilidade é do proprietário.
Crédito: Secretaria de Estado de Cultura
Crédito: Secretaria de Estado de Cultura
Mas há uma previsão no próprio Decreto-lei nº 25, de 1937, que regulamenta os tombamentos, que abre uma possibilidade. Diz o artigo 19 que “o proprietário de coisa tombada, que não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação” deverá levar ao conhecimento do órgão que tombou e, caso confirmado essa incapacidade financeira, passará a responsabilidade ao ente estatal.
O processo
O Solar dos Airizes passou por todas essas etapas. Um processo envolvendo os proprietários, o Iphan, a 2ª Vara Federal de Campos e o Ministério Público Federal teve fim em junho de 2013. A decisão foi tomada e o transito em julgado declarado. Ou seja, não cabe recurso. Cumpre-se, somente. Mas na prática isso não aconteceu.
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A decisão do judiciário, após ouvir todas as partes, e examinar todas as provas, foi de responsabilizar a Prefeitura de Campos pelo restauro do Solar. Apesar de entrar com apelação, negada pela Vara Federal, a municipalidade é a responsável por restaurar de imediato a construção. E sobre sua ruína, caso aconteça. Apesar de concluído em 2013, o processo continua intimando a prefeitura, que por sua vez age “em nítido intuito protelatório”, como diz o despacho.
A negativa do juízo à apelação foi clara: “não há que invocar a responsabilidade concorrente, com efeito, não se sustentam os argumentos do executado no que tange a perda de receita, queda na arrecadação, gastos emergenciais e comprometimento com demais obrigações”. E vai além: “não obstante este juízo reconhecer o atual momento de dificuldades decorrentes de crise econômica nacional e da pandemia (...), convém destacar que a sentença (...) traçou cronograma razoável para o cumprimento da obrigação”. Cita ainda que não foi encontrada nenhuma ação da prefeitura "no sentido de cumprir o julgado”.
O novo despacho exige que seja elaborado um projeto completo de restauração do Solar no prazo de 60 dias, e que este seja encaminhado ao Iphan para autorização. As despesas para o restauro devem estar contidas no plano plurianual e nas leis orçamentárias do município. E tudo deve ser comprovado documentalmente nos autos do processo. Em caso de descumprimento, a multa diária pode chega a 15 mil reais, a ser paga diretamente pelo prefeito.
A culpa é de quem?
Não interessa a qualquer gestor minimamente sério que um relevante patrimônio histórico-cultural de sua cidade vá ao chão. As perdas seriam bem maiores que os custos de restauro e manutenção. Políticas, inclusive. Pode-se argumentar que o problema é antigo e que vem se arrastando por diversos governos sem solução. Sim, embora tenha uma premissa verdadeira, a omissão do mandatário atual não será justificada pela tese. É preciso resolver.
Com o agravante de que, diante dos fatos e decisões judiciais, não é mais uma questão de “é preciso”, ou “se”. É uma questão de como e quando. Seja de quem for a culpa.
A intimação proferida é de conhecimento da prefeitura. Em ofício enviado ao Iphan em outubro deste ano, a prefeitura diz que o município e a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (Fcjol) “foram intimados do cumprimento de sentença, onde determina, num lapso temporal de 60 (sessenta) dias, a apresentação de um projeto para a restauração do Solar dos Airizes”. Alegando não possuir “em seu quadro de servidores, tal profissional para elaboração de tal projeto”, pede que o prazo seja aumentado.
Caso o Iphan concorde em aumentar o prazo, e seja peticionado à Vara Federal de Campos, e ela aceite, não haverá garantias do novo prazo ser cumprido. A celeuma pode continuar se entendendo até que não seja mais necessária sua existência, a não ser para responsabilizações. O Solar dos Airizes resiste bravamente de pé, mas não se sabe por quanto tempo.
Para que se garanta o que foi decidido, em tempo hábil para cumprir seu objetivo, o caminho mais coerente é a elaboração de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), onde seriam estabelecidos os prazos necessários para execução, mas que sejam tempestivos. Com acompanhamento do Iphan e da sociedade civil campista (veja um exemplo de TAC aqui).
De quem é a culpa - ou a quem interessa a ruína - são questões menores, pois a justiça já cumpriu seu papel julgador. Cabe agora ela cumprir seu papel coercitivo e criar as condições de cumprimento da sentença.
Foto: Rodrigo Porto
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    Edmundo Siqueira

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