O Japão e o Nordeste estão logo ali
31/05/2018 16:02 - Atualizado em 01/06/2018 14:39
Foi andando nas ruas da Liberdade, bairro de imigração japonesa em São Paulo, que Xico Sá, escritor e colunista do EL PAÍS, encontrou um portal entre o Japão e seu querido cariri cearense, região sertaneja no Nordeste do Brasil. No Largo da Pólvora, reconheceu Matsuo Bashô, um dos poetas nipônicos mais famosos da história, disfarçado de sapo. Atrás dos balcões dos restaurantes, viu as facas dos sushimen nordestinos se transformarem em espadas katanas e eles próprios em samurais. Aí foi traçando uma série de haikais que agora estão reunidos em Sertão Japão, seu novo livro.
Entre porres no Kintarô, o boteco japonês mais brasileiros de São Paulo, e caminhadas com a filhinha Irene pela Liberdade, Xico Sá conta que foi construindo um mundo, às vezes palpável, às vezes imaginário, em que Japão e Nordeste estão logo ali. Os trabalhadores dos restaurantes foram sua inspiração inicial: “sushiman cearense / uma vida sem bainha / vingança ao sol nascente”. Mas aí a coisa já tomou todo o sertão e, nos poemas, as roupas de couro dos cangaceiros se transformaram: “chinelos de Virgulino / solado de samurai / despiste no destino”.
O livro sai este mês pela Casa de Irene, editora novíssima e artesanal que o escritor fundou em parceria com sua companheira Larissa Zylbersztajn. Livro e editora são, segundo ele, uma volta ao início de sua carreira, quando, no final dos anos 1970, início dos 1980, fez parte do movimento de poesia marginal em mimeógrafo do Recife. “No meio de tudo que está acontecendo no Brasil, veio um respiro, juntei os haikais e lançamos a editora, fazendo questão que o processo inteiro fosse artesanal, como era na época dos mimeógrafos”, conta o escritor. Por enquanto, Sertão Japão, pode ser encomendado apenas por e-mail, mas em breve estará disponível em algumas livrarias, como na Martins Fontes, em São Paulo, e Folha Seca, no Rio de Janeiro.
Em 1984, Xico Sá venceu um prêmio de haikais da então editora Brasiliense, em São Paulo. Agora, volta ao gênero, que define como o registro de um breve instante fotográfico da natureza e do passar do tempo. Japonesa, a sucinta forma poética em três versos de cinco, sete e cinco sílabas, tem longa história no Brasil. Na primeira metade do século XX, o poeta e ensaísta Guilherme de Almeida era um entusiasta da forma, o desenhista e jornalista Millôr Fernandes era outro, mas os mais conhecidos são os poetas Paulo Leminski e sua companheira Alice Ruiz.
“Conheci os haikais pelo filtro do Leminski e da Alice Ruiz, mas acho que o sertão tem um ritmo bem japonês, mais devagar, da passagem do tempo, que é o que está nessa poesia”, diz Xico Sá. Por isso mesmo, conta o escritor, o processo do livro também é todo artesanal. A parte gráfica foi feita, por um lado, por José Lourenço e, por outro, por Thais Ueda. Lourenço, que é diretor artístico da Lira Nordestina, um centro de produção cultural dedicado à literatura de cordel, em Juazeiro do Norte, no Ceará, fez as xilogravuras que compõem o livro. Ueda, responsável pelas ilustrações, é desenhista e tem uma série de trabalhos que têm referência na cultura japonesa.
No sertão nordestino, como diz um dos haikais, “as quatro estações / são apenas duas / a do sol e a da chuva”, bem ao contrário do Japão, onde cada desabrochar e murchar de flor é notado e cantado. Para o escritor, contudo, apesar das diferenças, o profeta da chuva sertanejo, aquele que passa os dias procurando sinais no céu e vaticina quando a água irá cair e dar alguma trégua, é a personificação do espírito dos haikais. Assim, Xico Sá vai traçando outros mil paralelos nessa sua volta à poesia e ao espírito da geração mimeógrafo.

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