A metamorfose ambulante do carisma lulista: do sindicato à turminha do capital cultural
Roberto Dutra 02/06/2022 11:09 - Atualizado em 02/06/2022 14:45
Max Weber define o carisma como uma forma de autoridade baseada em qualidades extraordinárias que os adeptos atribuem a um líder político, religioso ou de qualquer outra esfera social. O ponto fundamental é que antes de ser algo possuído pelo líder, o carisma é algo atribuído pelo movimento carismático. Não existe líder carismático sem movimento carismático.
Lula é o mais importante exemplo de liderança carismática na política brasileira das últimas 4 décadas. Muitos estudos já foram feitos sobre a trajetória pessoal e política dele. Mas ainda não conheço um estudo sobre a trajetória do carisma lulista, ou seja, sobre as metamorfoses do movimento carismático responsável pela construção e duração deste carisma.
O ponto de partida para um estudo deste tipo deve ser o da pluralidade e sobreposição estratificada dos diferentes segmentos que compõem o movimento carismático. E deste ponto de partida decorre evidentemente a tese de que tanto o movimento como o carisma não permanecem estáticos: eles vão se transformando de acordo com a centralidade que certos grupos e classes sociais assumem no movimento e na atribuição das qualidades extraordinárias que constituem o carisma do líder.
Tendo por base esta reflexão, gostaria de esboçar um modelo hipotético sobre a trajetória do carisma lulista.
1) A primeira fase: Nas décadas de 1980 e 1990 o carisma lulista era a de um líder sindical que sabia defender com qualidades políticas extraordinárias os interesses dos setores organizados da classe trabalhadora, sejam estes da indústria ou do funcionalismo público. Sustentando este carisma havia um movimento sindical forte, que mesmo não sendo capaz de garantir vitória em eleições presidenciais, assegurava pelo menos 25% dos votos. Intelectuais e artistas participavam do movimento, mas não constituem um grupo definidor do carisma lulista.
2) A primeira metamorfose: Entre 2002 e 2010, durante seus mandatos presidenciais, ocorreu um realinhamento eleitoral em torno de Lula que também se verifica na estrutura do movimento carismático em torno de sua liderança: como fica claro nas eleições de 2006, a maioria dos pobres e dos setores desorganizados da classe trabalhadora passam a fazer parte não apenas do eleitorado, mas também do movimento carismático lulista. Lula deixa de ser apenas um líder carismático dos sindicatos para ser também um líder carismático do Brasil popular desorganizado, ocupando um espaço que lideranças como a de Brizola e Arraes já haviam ocupado. Este segundo momento é o mais pluralista e amplo na trajetória do movimento carismático lulista, cujo auge foi em 2010. No entorno mais próximo de Lula, ainda se encontram seus companheiros líderes sindicais. Mas é ao redor deles, em outro segmento, que vemos a grande força do movimento: o povão desorganizado que projeta em Lula não as qualidades de um líder sindical combativo e habilidoso, mas as virtudes de um homem do povo que já passou fome e que tem empatia e compromisso com os pobres.
3) Segunda metamorfose? Entre 2010 e 2018 o movimento carismático lulista viveu o processo mais difícil de todo movimento carismático: a sucessão do líder por outra pessoa e os riscos de encolhimento que isso pode trazer para o carisma do líder, empenhado no fracassado governo Dilma. O fracasso da sucessora de Lula criou problemas sérios para os elementos populares e desorganizados do lulismo. E como o governo Lula promoveu a maior desindustrialização da história brasileira, ele acabou também destruindo as bases sociais do elemento organizado/sindicalizado do movimento carismático. O sindicalismo hoje não representa nada no movimento lulista, assim como não representa no país. Com a volta da fome em massa e da miséria selvagem no governado Bolsonaro, Lula retorna com força. Mas o que isso indica para a composição de seu movimento carismático? A grande maioria dos pobres continua atribuindo a Lula qualidades extraordinárias no sentido de melhorar a vida do povo, da classe trabalhadora desorganizada, hoje jogada na mais selvagem informalidade. Trata-se, porém, de um carisma baseado na memória recente, e que pode ser abalado tanto pelo embate com outra memória recente - a tragédia Dilma - como pelas dificuldades de um eventual novo governo. Velho e claramente sem condições pessoais para os embates políticos que precisaria enfrentar para garantir o mínimo existencial para este público mais pobre, Lula corre o risco de perder rapidamente a principal base que resta a seu movimento carismático. Além dos pobres, o movimento carismático lulista conta hoje com um entorno mais próximo de artistas, intelectuais e ativistas de orientação identitária, como pudemos ver claramente no evento desta semana na PUC de São Paulo. Ao contrário dos antigos companheiros sindicalistas, este segmento da elite cultural detesta tudo que é popular, da música sertaneja ao pentecostalismo. Essa "turminha do capital cultural", para usar a expressão do cientista político Carlos Sávio Teixeira, pode redefinir o carisma de Lula em uma direção elitista e politicamente preocupante: em vez de ser o líder com qualidades extraordinárias para representar o povo organizado ou desorganizado, se atribui a Lula qualidades extraordinárias que parecem transformá-lo numa espécie de novo Chico Buarque, ou seja, um senhor refinado e com sensibilidade para os afetos e padrões de comportamento pessoal da classe média culta, mas sem apelo popular. É o Lula que dá protagonismo à esposa no palanque para não parecer o “tosco machista”; é o Lula que fala em comida vegana para não provocar desgosto em uma plateia que não consegue disfarçar sua condenação do gosto popular pelo churrasco. Mesmo a empatia de Lula com a pobreza ganha outro sentido nesta relação que o líder carismático mantém com seu círculo mais próximo, hoje constituído por essa “turminha do capital cultural”: agora não se trata de uma relação de empatia entre Lula e os pobres, mediada apenas pelo trabalho de difusão dos meios de comunicação de massa, mas sim de uma empatia de Lula com a “turminha do capital cultural”, cujo sentido é confirmar, para este público, seu próprio sentimento de superioridade moral por gostarem dos pobres e por estarem do “lado certo da história”. Evidência de que esta hipótese é correta foi o fato de que, no evento destinado à leitura de cartas enviadas a Lula durante o período em que esteve preso, o protagonismo maior foi assumido não pelos autores das cartas, mas pelos artistas que estavam ali para melhor interpretar o sentimento popular. Para essa parte culturalmente elitizada do movimento carismático lulista, o povo é apenas um pretexto. E se Lula continuar neste caminho corre o risco de ter seu exuberante carisma reduzido ao tamanho da importância que a “turminha do capital cultural” possui para o povão, que graças a Deus não é muita coisa.

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