talvez não seja tão ruim
- Atualizado em 06/11/2019 23:52
Talvez não seja tão ruim
Cândida Albernaz
O ônibus fazia seu percurso de forma mais lenta do que o normal. O trânsito estava horrível, como sempre. As pessoas encostavam os corpos suados uns nos outros e os mais tarados, tiravam proveito disso.
A mulher de vestido azul bem curto passava um sufoco. Um sujeito alto, de cabelos negros e crespos, olhava para a janela como se prestasse atenção nas ruas pelas quais o ônibus passava. Na verdade, colou seu quadril na garota e ela, por mais que fizesse, não conseguia se livrar dele. Acabou de dar uma cotovelada na barriga do cara, pedindo que se afastasse. Ele desculpou-se e segundos depois, arrumou um jeito de voltar à posição anterior. Ela resolveu descer no próximo ponto. A expressão dele era sacana, enquanto a dela, furiosa.
Não me meto, caso contrário arrumaria confusão todos os dias. Pior do que ônibus lotado é quando somos assaltados, e o pouco que temos na carteira vai parar nas mãos de um filho da puta qualquer.
Por falar nisso, não adianta que eu fique puto também. As coisas se resolverão por si mesmas.
Para casa não posso voltar tão cedo. Judite vai ter que se virar sozinha por uns tempos. Já combinamos tudo. A irmã dela, Jacira, vai passar uma vez por semana no buraco onde vou ficar escondido – porque aquilo não é casa – para me levar mantimentos e notícias da família.
O boné e os óculos que estou usando, escondem parte do meu rosto, mas ao mesmo tempo chamam a atenção de qualquer um que esteja à procura de outro. Não houve jeito, tive que entrar nesse ônibus para chegar onde preciso. Depois pegarei outro e mais outro.
Só dou banho em quem tem algum. Costumo livrar os caras de seus carrões e depois faço a revenda para uns companheiros que sabem o que fazer com eles. Os donos dos carros nem saem tanto no prejuízo, porque esse pessoal tem seguro de tudo, mas eles gostam de reclamar assim mesmo. Não querem perder tempo com burocracia, papelada para preencher, é o que dizem. Que se danem! Tenho que sustentar os meus. Quem se dá mal mesmo é a seguradora.
O problema dessa vez é que um dos últimos carros que travei, era do filho de um delegado, e não deixaram barato. Estão no meu pé e, ou eu sumo, ou eu sumo na mão deles. Preciso passar um tempo longe e torcer para não ser pego. Até já encontraram o carro, mas mesmo assim, querem a minha carcaça.
Chegou minha vez de descer. Eita lugarzinho feio, este aqui! Foi o que consegui arrumar com o cara do desmanche. Depois de muita conversa, convenci para que me ajudasse. Só ele e Judite sabem onde estou. E Jacira.
* * *
Até que o quartinho não é do piores. O colchão num canto e o ventilador no teto é um luxo que eu nem esperava. O problema é não poder sair daqui.
Judite vai tentar arranjar emprego em outro lugar. Vamos para uma cidade longe desta. Minha mulher tem uma amiga que ficou de conseguir trabalho na casa de uma senhora. Ela mora sozinha e possui um quarto nos fundos onde nós e nosso filho vamos morar. Judite vai cuidar da casa e eu do jardim. Só quero ver. Não entendo porra nenhuma de planta.
Com o tempo, recomeço meu negócio por lá mesmo.
Jacira deve vir daqui a uns dez dias. Acho que antes de seis meses não saio daqui.
Judite já foi avisada que é para fingir que dei o fora e sumi no mundo, portanto vamos ficar esse tempo todo sem nos ver.
Fico pensando em como faço para aguentar estes seis meses sem minha mulher.
Acho que Jacira vai ter que ajudar nisso também. Até que a irmã de Judite é bem gostosinha.
Ela ainda não sabe, mas um dia traz a comida... a gente conversa... eu carente e ela também, que eu sei... um abraço aqui, uma cara de tristeza ali, uma mão esperta no lugar certo.
É... Talvez não venha a ser tão ruim o tempo neste cubículo

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".