Crítica de Cinema - Utopia dentro de distopia
Edgar Vianna de Andrade 09/10/2017 20:13 - Atualizado em 13/10/2017 19:33
Ao assistir a “Blade Runner 2049”, veio-me a lembrança de “Nunca verás país nenhum”, do brasileiro Ignácio de Loyola Brandão (Rio de Janeiro: Codecri, 1981). O livro é uma distopia, ou seja, um mundo indesejável, desumano, bem diferente de uma utopia, que imagina um mundo melhor que o atual de hoje e de outros tempos. A formulação de utopias indica que o mundo não vai bem, mas que há espaço para a esperança, para a construção de uma sociedade melhor, ainda que imperfeita. A proliferação de distopias pode corresponder a um mundo tão sombrio no presente que só cabe imaginar mais sombras no futuro.
No livro de Brandão, o Brasil se tornou intolerável. No seu final, uma plantinha brota numa greta de asfalto e um mulato mantém a calma no meio da multidão desesperançada, buscando uma saída. É um final em que a utopia sobrevive.
“Blade Runner” é uma distopia com base em livro de Philip K. Dick, já levado às telas por Ridley Scott. Agora, o roteiro ficou por conta de Michael Green e Hampton Fancher. A direção é do conceituado Denis Villeneuve. O tempo é o ano de 2049. O espaço é Los Angeles. O mundo mudou muito, mas a economia de mercado continua dominando. Já há planetas habitados. Os replicantes antigos foram eliminados por representarem perigo. Os novos replicantes são mais dóceis. Trabalham como escravos. Existe um grande empresário para quem só pode haver acumulação de capital com trabalho compulsório.
Houve o uso de armas nucleares que acabaram com o mundo antigo (depois do primeiro filme). Um mundo novo se organizou, mas não um mundo melhor. No centro (sempre os Estados Unidos), estão metrópoles saturadas de propagandas e de imagens virtuais. Na periferia, o lixo e os miseráveis trabalhando para o centro. A maravilha da tecnologia esconde a miséria e a sujeira.
Nesse mundo, movimenta-se o agente replicante K (Ryan Gosling), encarregado de eliminar os replicantes do passado. Logo de início, ele extermina um replicante antigo que traz um segredo. Ele fala de um milagre. A própria vida de K está ligada a este segredo milagroso. Nesse mundo intolerável, K vai empreender uma investigação que o levará e revelações muito perigosas para ele e para a nova ordem. Nessa procura, ele encontrará Rick Deckard (Harrison Ford), que foi o principal caçador de androides do primeiro filme e se ligou amorosamente a uma replicante. Os androides antigos estavam a um passo da humanidade. Rachael, a mulher de Deckard no primeiro filme, também uma androide, engravida e concebe uma criança. As referências literárias e bíblicas estão presentes no filme. Josef K é o personagem central de “O processo”, de Kafka. Rachael era a esposa predileta de Jacó, mas estéril. Por um milagre, ela se torna fértil. Tais referências não são alcançadas pelo grande público, desejoso de ação e clareza.
Onde se situa o calcanhar-de-aquiles do filme? Primeiro, a tendência do capitalismo é se tornar impessoal, assim como o mundo virtual. K acaba sendo perseguido por suas descobertas. Inclusive, replicantes sobreviventes do velho mundo preparam uma grande rebelião. Seguindo as tendências do neoliberalismo, é de se esperar um futuro empresarial governado por grupos. Um capitão de empresa do tipo da primeira revolução industrial destoa do contexto geral do filme. E ele encarna o mal. O objetivo do mercado não é ser mal, mas acumular lucro.
Cinema
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E na periferia de Los Angeles, os antigos replicantes representam esperança de uma utopia. Ela não é mais obra de humanos, mas de androides. O quadro se assemelha bastante aos revoltosos de “Guerra nas estrelas”. Pouco a pouco, o filme se encaminha da coletividade para os indivíduos. A rebelião não eclode, sugerindo um terceiro filme ou uma série, que dê continuidade à história. Franquias indicam sempre incompletude e bilheteria.
Denis Villeneuve deixa sua marca no filme, mas faz concessões ao espírito de Hollywood. Sugiro, aos interessados, a leitura de “Androides sonham com ovelhas elétricas”, de Philip K. Dick, livro que deu origem aos dois filmes. Nele, encontraremos um dos maiores criadores de distopias do século XX. Nenhum filme, até agora, conseguiu reconstituir a atmosfera sufocante deste livro, publicado em 1968.

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