Na ponta do nariz, a fina armação repousava sobre a quina das orelhas do homem. No início do dia, mascarados os cansaços da noite anterior, pequenas trincas quase invisíveis permeavam toda a xícara branca amarelada pelo café cotidiano: hábito tedioso a se repetir.
Ao lado da xícara, em cima da toalha plástica que grudava a mão num toque-instante, estava o aparelho substituto do velho jornal de domingo lido demoradamente ao longo de toda a semana, todos os dias, naquela mesma cadeira. Tudo enquanto a mulher ainda dormia um pouco mais.
A pequena televisão falava sozinha com a pia, a mesa e as cadeiras desocupadas enquanto o homem ali não estava mais para ouvir os acontecimentos futuros narrados quando já pretéritos.
Dentro do carro, ele cumpria trajetos não programados ao longo do dia, levando passageiros e reclamando da vida do trânsito do tempo do preço da gasolina do sujeito que, na sua frente, parou sem sinalizar e quase bateu.
Sentia seu peso espalhado pela cadeira como se estivesse em casa, fora das necessidades da rotina, usufruindo das décadas trabalhadas com as contas pagas. Mas precisava sair para ganhar o que o salário não pagava até o final do mês.
Da televisão, poderia ouvir a notícia de que a avenida principal, fechada em razão de um grande acidente, não seria aberta tão cedo. O lugar era próximo a ponto de a casa vibrar com a explosão que levou o posto os carros as bicicletas o cachorro passante os pedestres desavisados, fazendo voar a bomba de combustível que, visor esfacelado, ainda queria marcar o consumo instantes depois.
Ligou o rádio antes de virar a chave. Sem saber que seria a última, deu a partida. Saiu de sua garagem virando à esquerda. Manobrou o carro até entrar na fila. Andou de pouco em pouco até chegar na bomba. Pediu que o frentista completasse o tanque. Acelerou o coração quando ouviu o estrondo. Perdeu a consciência no clarão espontâneo. Deixou pra trás as necessidades as contas as memórias não vividas os minutos a mais na cama como dívida em aberto que o trabalho não permitiria quitar.
Já não havia carro nem homem nem celular nem óculos sobre o nariz quando ele se via sentado em casa – memória idealizada no devir– a expandir seus passos depois da explosão ocorrida enquanto abastecia seu carro. Sua breve retrospectiva não acontecida gerava imagens enquanto não podia se perguntar por que não dormira um pouco mais.
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados, quinzenalmente, no blog Extravio.