Mas ele não acreditava. Sentado na sala, sequer era capaz de se incomodar com a fumaça e o calor insuportáveis. Estava, é claro, em seus últimos minutos, mas insistia em crer que não havia fogo, fazendo valer sua teimosa opinião até o fim.
Não chamaria socorro, uma vez que não acreditava no que vivia. A realidade palpável dependia de sua interpretação para acontecer, prevalecendo sua opinião sobre o mundo ao redor.
Parece absurdo, mas o mesmo ocorreu com a COVID, com a vacina, com a terra plana e com tantos outros temas que são reduzidos a assuntos de ordem opinativa.
Fica a critério, porém, de quem presencia o absurdo julgá-lo como tal. Mas o que se faz ainda mais incongruente nisso tudo é pensar que a negação da realidade pode ter um propósito muito bem articulado.
Exemplos importantes contornam as jogadas de marketing das eleições presidenciais deste ano: a constante negação da segurança das urnas eletrônicas e o despautério da negação das pesquisas de intenção de voto - que dão a vitória para o candidato da oposição - são dois emblemáticos casos de rejeição da realidade.
O primeiro caso a gente já sabe o porquê: negar a segurança das urnas é apenas uma prévia do queixume - leia-se chilique - de uma possível derrota.
O segundo caso não é tão grave para a democracia brasileira, mas sim para a sanidade mental: eleitores fanáticos atacaram, nesta semana, a XP Investimentos em razão da pesquisa encomendada ao Instituto Ipespe. Nenhuma novidade nos números divulgados: a diferença entre o primeiro e o segundo candidatos era significativa, e a pesquisa, diante dos protestos, foi anulada.
A sede por negar a realidade é tanta que os transgressores da existência tendem a evidenciá-la nos atos grotescos de quem não se localizou na tragédia brasileira dos últimos anos.
A melhor parte, pensando no segundo caso, é que a casa - diz a pesquisa - está pegando fogo e vai ruir em breve. Só não vê quem permanece dentro dela.
*Esta crônica faz parte da série “Manual de desutilidades”, que tem como finalidade trazer reflexões críticas sobre questões cotidianas, brincando com o pragmatismo dos manuais de instruções – mas sem a pretensão de instruir ninguém.
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Sobre o autor
Ronaldo Junior
[email protected]Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.