Como ignorar a liberdade
Ronaldo Junior - Atualizado em 02/04/2022 13:28
Antes mesmo de entrar verdadeiramente no assunto, vale dizer que você tem total liberdade para sequer iniciar a leitura deste texto - o que inclui a livre expressão de rechaçar minhas ideias à sua maneira.

Feita esta intervenção - direcionada aos leitores que se posicionam mais ardorosamente contra a liberdade -, já é possível dizer que, se você chegou até aqui, é porque tem alguma ponderação sobre o tema ou já antevê alguma crítica sobre o meu texto.

Tudo começa com as intolerâncias e a falsa compreensão de liberdade que o indivíduo tem. Xingar ou injuriar alguém e se proteger sob a égide da liberdade de expressão demonstra que o indivíduo sequer sabe o que é liberdade - ou alteridade e bom senso, a depender.

Isso porque ser livre em sociedade pressupõe limites, pois o outro pode ter sua dignidade impactada pelo uso desenfreado de uma liberdade que se considera absoluta. Aliás, deve ser frisado que a consideração sobre a ofensa diz respeito ao ofendido, não ao agressor.

Isso se aplica também à tão falada liberdade de ir e vir, limitada durante alguns momentos da pandemia como forma de prevenir a disseminação da COVID. Os que se dizem encarcerados e reclamam da falta de liberdade - talvez porque não suportam a própria companhia - não vão além de pessoas que não entenderam o que é ser livre, pois a liberdade não pode contribuir com o agravamento de uma crise sanitária nem com a proliferação e a mutação de um vírus que matou centenas de milhares de pessoas só no Brasil.

E essa, talvez, seja a questão mais incômoda quando vejo pessoas apedrejando a liberdade: quem o faz diz que não é livre porque não pode se manifestar para atingir o outro - sendo, por exemplo, racista - ou porque não pode fazer suas próprias escolhas, uma vez que deve abrir mão de suas ações em razão do outro.

Com isso, a aclamação de uma ditadura traz consigo a curiosa postura de quem o faz tão somente porque é livre. E a primeira dica deste texto não é outra: usem o direito livre e irrestrito de cercear a própria liberdade se calando como se censurados fossem - o que poupará os ouvidos de muita gente das intolerâncias vociferadas por aí.

Outra dica que pode cair bem diz respeito a ignorar as redes sociais, o que não significa apenas silenciar certas opiniões, mas abrir mão do ambiente virtual, que acaba sendo um antro de inutilidades e de opiniões diversas - você não vai querer estar lá.

Além disso, vale esta: esqueça toda e qualquer expressão artística, pois a arte é um símbolo da liberdade que, numa ditadura, deve ser banida, e isso inclui músicas, filmes, séries e diversas outras expressões.

Por fim, os apoiadores da ditadura podem também se eximir de votar, uma vez que esse negócio de voto, ainda mais em urna eletrônica, não é coisa para quem rechaça a liberdade.

Afinal, ao não compreender que não há direito absoluto em uma sociedade livre, se perde também a própria noção de dignidade humana, pois cada indivíduo convive com as liberdades do outro e com as suas. Mas quem apoia censura só vai querer saber de limitar a opinião do outro em benefício da própria - talvez por falta de convicção ou por conforto.

Até porque, convenhamos, elogiar ditadura em um regime democrático é confortável demais.
 
*Esta crônica faz parte da série “Manual de desutilidades”, que tem como finalidade trazer reflexões críticas sobre questões cotidianas, brincando com o pragmatismo dos manuais de instruções – mas sem a pretensão de instruir ninguém.
**Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.