Talvez Dona Rosa esteja certa
Edmundo Siqueira 23/04/2022 12:56 - Atualizado em 23/04/2022 12:59
Senhora sentada à mesa de um café, 1906 - Thomas Julio Léal Da Camara
As finais de semana, frequentar a padaria perto da sua casa era quase um ritual para Elio. Mais que apenas comprar alguns pães, ele gostava do ambiente. Da energia que tinha ali. Cumprimentava a moça do caixa, olhava as prateleiras na esperança de ter um bolo diferente, pedia 7 brizolinhas (sempre em número ímpar), e por vezes sentava-se nas mesinhas que davam para o prédio em frente, para tomar um café. Olhava as colunas da construção em estilo greco-romano, quase fiel ao Parthenon, e relaxava.

Naquele sábado uma senhora estava na mesa ao lado. Resmungava alguma coisa — incompreensível para além da sua companhia imaginária. Elio pretendia ignorá-la e continuar a sorver o café, mas ela decidiu puxar conversa, virando na cadeira em direção a ele.
— Menino, você vê só. Ali na frente é a casa dos políticos. É um palácio, não é? — Ela mesmo respondeu — Sim, é um palácio. Meio que distante de nós, concorda?
— Sim, é imponente. — Elio responde, olhando para o prédio.
— Meu nome é Rosa. E o seu?
— Elio.
— Prazer, Elio. Não vou te incomodar não, mas fiquei muito triste quando vi um monte de polícia ali, esses dias. Já é um prédio meio fechado, “imponente” como você disse, e ainda protegido pela polícia? Soldados romanos protegendo os Senadores, parecia. Não estamos no Império de Júlio César. Mas, se continuar assim, vai parecer.
Dona Rosa se mostrou mais culta que a aparência deixava transparecer aos olhos de Elio. Se interessou. Deixou a secura de antes e entrou na conversa, definitivamente.
— Eu vi, Dona Rosa. Foi mesmo vergonhoso. Um prédio tão bonito e representativo, que remete a origem da democracia, sendo palco de uma briga tão pequena. E pior: parece que ainda está longe do fim.
— Pois é, meu filho. São vereadores, não são? — Dona Rosa era afeita a perguntas retóricas. — Vereador vem do verbo “verear”: verificar, vigiar. Mais que isso, verear é sobre cuidar do bem público. É o cargo mais próximo do povo, representa bairros, distritos...deveria ser, na verdade. A gente que está tendo que vigiar eles.
— Mas acho que é por isso, Dona Rosa. Eles vieram do povo, são o seu espelho. A qualidade da nossa democracia...
Dona Rosa interrompeu, abruptamente.
— Acho melhor a gente deixar essa conversa, menino. Você daqui a pouco vai falar que tem que ter prova para ser vereador, que uma elite deveria governar, e que isso é tudo culpa do povo que não sabe votar. Desculpa se estou sendo grossa, moço. Mas sou assim mesmo. Direta. Vamos continuar aqui o café e deixar essa conversa para outro dia.
Dona Rosa virou-se de costas para Elio e continuou a levantar a xícara de café até a boca, tomando um gole só depois de balbuciar alguma outra coisa inaudível.
Elio olhou novamente para o prédio e suas colunas greco-romanas. Dona Rosa, talvez, estivesse realmente certa. A sua forma de pensar era elitista e o deixava, confortavelmente, longe do problema. A política não é uma atividade alienígena. Ela é essencialmente humana. Mesmo na Roma antiga, já apresentava desavenças, corrupção e desvios de função. “E qual instituição da sociedade não apresenta?”, pensou Elio.
Como qualquer outro aglomerado de gente, existiam ilicitudes e virtudes ali no prédio em frente. A culpa, se for possível defini-la, não é do povo, dos vereadores, do prefeito ou do padre. É de todos. Do coletivo. Do principado criado em bases desvirtuadas que em algum momento transformou-se em uma democracia imperfeita.
E já foi perfeita? Desde as revoluções burguesas que derrubaram monarquias absolutistas, como a Revolução Americana, de 1776, e a Francesa, de 1789, tentamos encontrar uma forma de coexistir em relativa harmonia. “Mas sem lá muito sucesso”. Elio verbalizou a frase, no meio dos pensamentos, também com a xícara próxima do rosto, olhando para o prédio.
— A solução, meu filho (sem que Elio percebesse, Dona Rosa já estava de pé, ao seu lado, ajeitando a bolsa nos braços), é só esse pessoal aí do prédio olhar para o povo. E abrir essa casa. Precisa de polícia, não. Precisa de política. Daquela que os pensadores antigos ensinaram para a gente. Aqueles homens deixarem de olhar para os próprios umbigos gordos. Não tem nenhuma mulher lá, né?
Elio, dessa vez, respondeu a pregunta retórica antes dela:
— Nenhuma, Dona Rosa. E talvez a senhora esteja certa.

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