Gilka Machado e o pioneirismo feminista
27/06/2019 18:34 - Atualizado em 02/07/2019 15:44
"... viva em mim a alma de todas as mulheres que morreram sem amor!...”
Poucas pessoas fora dos meios literários profissionais conhecem Gilka Machado, ainda que simplesmente de nome, como conhecem Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Cecília Meireles. Gilka da Costa de Melo Machado, que passou à história da literatura brasileira apenas como Gilka Machado, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de março de 1893, cidade em que também faleceu, em 11 de dezembro de 1980.
Mário de Andrade também nasceu no mesmo ano. Como ele, Gilka nasceu acompanhada de uma estragosa sensibilidade, como Mário se definiu. Recentemente, uma carta confirmou a homossexualidade de Mário, traço que ele sempre escondeu. Gilka, por sua vez, tinha uma sexualidade feminina à flor da pele, característica que ela não escondeu. Pelo contrário, fez questão de estampar em seus poemas. Seus versos são carregados de amor à natureza, de sensorialidade, de sensualidade e de erotismo. Certamente, outras mulheres nasceram com esse temperamento. Poucas foram poetas e nenhuma delas revelou sua voltagem erótica como Gilka Machado.
Afinal, a condição feminina até pouco tempo enfrentava dificuldades. Talvez ainda encontre, a julgar pelos incontáveis casos de violência contra a mulher. Gilka viveu num tempo extremamente cruel para uma mulher de classe média, casada e mãe. Toda sua obra é perpassada por um conflito entre sua sensibilidade e as convenções sociais, conflito que ela vai superando – não de todo – depois da morte de seu marido, o também poeta Rodolfo Machado, em 1923.
Desde a adolescência, Gilka revelou talento para a poesia. Com 20 anos, em 1915, ela lançou “Cristais partidos”, seu primeiro livro. Embora eu já conhecesse sua obra completa num só volume (“Poesias completas”. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1992), consegui dela as primeiras edições de “Crystaes partidos” (Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1915), “Poesias” – 1915-1917 (Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1918) e “Sublimação” (Rio de Janeiro: Typografia Baptista de Souza, 1938).
Ficarei apenas com “Cristais partidos”. Neste seu primeiro livro, Gilka Machado mostra muito bem a mulher excessivamente sensível e corajosa. Ela era uma bela mulher, mas com aparência de futura matrona aos 20 anos, como revela uma foto sua publicada no livro. Gilka vive já no pré-modernismo, mas é clara a sua filiação ao simbolismo. A começar pelo título do livro, com um substantivo e um adjetivo claramente simbolistas. Outras palavras deixarão evidentes sua filiação poética: Sonho, Musa, Treva, Deserto, Saudade, Passado, Sol, Mãe-Terra, Vida, Liberdade, Vento, Natureza, sempre grafadas com inicial maiúscula, como a exprimir um significado além do ensinado pelos dicionários ou a valorizar os termos.
Em vários poemas, ela ecoa Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos e Cruz e Sousa. O soneto “Sino” é puro simbolismo: “Na solidão claustral das torres sempre posto,/o sino é um monge eril, um monge solitário,/que reza de mansinho a oração do desgosto,/e desfia de sons lentamente um rosário.//O sino é a alma do templo, ao meu ver, ao meu gosto,/é vário o seu pesar, o seu prazer é vário,/pois, se ele geme triste, às horas do Sol posto,/canta, às vezes, alegre, um canto extraordinário.//Quando o templo é festivo ele a saltar, bimbalha,/e voa dos seus sons pelo espaço a falange,/como de aves estranho e barulhento bando!//Mas, quando veste o Sol do poente a áurea mortalha,/o sino plange e oscila, o sino oscila e plange/turíbulo de bronze o ar de sons impregnando.”
Ela demonstra grande domínio da arte de fazer poesia. Compõe sonetos alexandrinos com rimas raras; escreve em outras formas, inclusive em versos livres, já prenunciando um modernismo a que nunca aderiu. Enfim, na arte de compor poemas, ela supera Mário de Andrade, que declarou ter escrito centenas de poemas parnasianos e simbolistas e ter se desfeito deles. Não acredito que tenha feito e que fossem versos que o consagrariam como poeta.
Gilka se sentia mais um animal seguindo seus instintos que um humano limitado por convenções sociais. Ela era mais uma fêmea no cio que uma mulher bem-comportada. Daí seu amor à natureza, expresso em tantos poemas. Ama a luz, as cores, as plantas, os animais. Verão, Sol, Terra, sempre com inicial maiúscula aparecem com frequência em seus poemas. Em “Estival”, ela se emociona com “a cigarra que canta, é a cigarra que tece...”. Explica-se esse amor: ela crê na existência da liberdade para viver e amar entre as flores e os animais, liberdade que ela anseia para a sua vida.
Sua sensorialidade é potente. O calor, o frio, o vento, a luz, as cores a fascinam. Ela goza com a natureza. Em “Ancia azul”, poema sem métrica, sua sensorialidade aflora: Alguns destaques: “tudo ao prazer convida”, “Lindas Manhãs azuis”, “manhãs tão mansas, tão macias, /que pareceis feitas de penas/e melodias”. “Eu, como as coisas, sinto indefinidas ânsias:/a atração do Ignorado, /a atração das Distância, /a atração desse Azul”.
Gilka expressa uma sensualidade na época só permitida aos homens. Desde os poetas provençais, a mulher é objeto de poesia. Até mesmo poemas dedicados a homens são escritos por homens travestidos de mulher. O homem elege uma mulher como sua musa e a idealiza. A mulher está silenciosa num lugar de culto. Gilka demonstra ousadia ao revelar com poesia sua sensualidade e erotismo: No soneto “Luz”, de imensa beleza, ela escreve: “Luz – concepção primeira e cósmica da Treva!/por esse teu fulgor lançares, dispenderes,/a beleza da Forma o olhar atrai e enleva,/goza a vista os da Cor emotivos prazeres.//Por ti flutua no ar dos perfumes a leva,/és o verbo de Deus, o poder dos poderes/o alimento vital que as coisas todas ceva,/o calor que impulsiona a máquina dos seres.//És o sêmen do Sol, que a Mãe-Terra fecunda,/que na treva germina e várias formas toma,/de cuja produção a humanidade é oriunda.//Possa eu sempre te ver por tudo distribuída, aroma,/luz que és som, luz que és cor, que és sangue força,/que és ideia a medrar no cérebro da Vida.”
O poema esconde e revela uma percepção mística da ciência, algo próprio do simbolismo. Ressoa a filosofia evolucionista de Henri Bergson. Para uma mulher jovem, de boa família e casada, deve ter sido um absurdo escrever as palavras “sêmen” e “fecunda”. Com vinte anos, Gilka demonstra saber perfeitamente que cegonhas não existem. Insisto: muitas outras mulheres deviam ser sensuais e eróticas como Gilka, mas ou não escreviam ou não se permitiam extravasar seus desejos. Isso era coisa para homens.E ela vai adiante, escrevendo “volúpia da Terra”, “um desejo imenso/de prazeres sensuais em nossas almas ferra” “ébria do amor transponho a virentialfloresta, /onde a Luxúria, como uma serpente, assoma...” Não sem razão o próprio Mário de Andrade a censura como mulher libertina.
Ela ama, declara seu amor e revela detalhes. Apenas para o marido, ela se abre. Mas, casada ou viúva, ela deve ter amado outros homens e sofrido muito as pressões sociais. Em certos momentos, ela lamenta ter nascido mulher: “... humanizada lesma,/eu tenho a sensação de fugir de mim mesma,/de meu ser tornar noutro,/e sair, a correr, qual desenfreado potro,/por estes campos/escampos.//De que vale viver,/trazendo na existência emparedado ser?/Pensar e, de contínuo, agrilhoar as ideias/dos preceitos sociais nas torpes ferropeias;/ter ímpetos de voar,/mas presa me manter no ergástulo do lar/sem a libertação que o organismo requer.”
E mais: “E que gozo sentir-me em plena liberdade! /longe do jugo vil dos homens e da ronda/da velha Sociedade.” Ou ainda: “Esta alma que eu carrego amarrada, tolhida. /num corpo exausto e abjeto”. “Ai! Antes pedra ser, inseto, verme ou planta,/do que existir trazendo a forma de Mulher!//Aves!/Quem me dera ter asas,/para acima pairar das coisas rasas/das podridões terrenas,/e sair, como vós, ruflando no ar as penas,/e saciar-me de espaço, e saciar-me de luz,/nestas manhãs tão suaves!/nestas manhãs azuis, liricamente azuis!” Daí, “... saudade enorme (...) não do meu passado, /mas de uma outra vida, não por mim vivida.”
Por viver intensamente o conflito derivado de uma sensualidade exasperada em meio de uma sociedade moralista e repressora, ela lamenta ter dado à luz um filho, como se, homem, ele fosse enfrentar limitações sociais que ela, mãe, enfrentava: “Tange longe um sino, numa igreja em festa (...)julgo a natureza um templo aceso, em festa... Ah! Meu pobre filho! que remorso imenso/minha mente punge, minha paz trucida,/sempre que te fito, sempre que em ti penso!/ Como devo expiar este meu crime imenso/de te haver legado o grande mal da vida?// Por um mero gozo da matéria imunda,/vieste ao mundo – fruto da volúpia minha,/tua dor será desse prazer oriunda,...” O conflito entre o mundo repressor e sua volúpia, seu gozo, sem prazer, agora tornados imundos.
Por fim, um corajoso desabafo contra as convenções sociais em choque com sua sensualidade, no soneto “Ser mulher”: “Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada/para os gozos da vida: a liberdade e o amor;/tentar da glória a etérea e altívola escalada,/na eterna aspiração de um sonho superior...//Ser mulher, desejar outra alma pura e alada/para poder, com ela, o infinito transpor;/sentir a vida triste, insípida, isolada,/buscar um companheiro e encontrar um senhor...//Ser mulher, calcular todo o infinito curto/para a larga expansão do desejado surto,/no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...//Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!/ficar na vida qual uma águia inerte, presa/nos pesados grilhões dos preceitos socias!”
No livro “Sublimação”, de 1938, Gilka se liberta das regras do simbolismo, mas ainda passa ao largo do modernismo. Nele, há também uma foto da poeta bem distinta daquela estampada em seu primeiro livro. Ela continua bonita, mas não se torna matrona, como parecia. Ao contrário, ela é agora uma mulher de olhar atrevido. Talvez tenha alcançado a liberdade tão desejada".

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