Guilherme Belido Escreve - Com apenas 36 anos, há 36 (1982), o Brasil perdia Elis
14/04/2018 17:24 - Atualizado em 17/04/2018 17:10
Indo direto ao ponto, o sub-título acima não faz justiça a Elis Regina, posto que não apenas o Brasil, mas o mundo, perdeu Elis. Contudo, em homenagem ao País que a revelou e em respeito à brasilidade que corria em suas veias, a citação é até válida.
Elis não se importaria com a demarcação de fronteiras visto que sua voz não conheceu limites. Aliás, não conheceu paralelos, comparativos e, com todas as vênias, não conheceu iguais.
Mais que cantora, intérprete. Para além de intérprete, uma artista que fazia da voz algo que não se explica – uma pergunta sem resposta – porque a música não era apenas ouvida, mas sentida.
Nos shows ao vivo, então, o sublime. Elis terminava suas interpretações em lágrimas e o público que a assistia tomado por intensa emoção. A bem da verdade, não é preciso assistir... Elis arrepia e comove aos que ouvem. E ponto.
Lacuna aberta, tão difícil quanto tentar definir Elis seria listar um, dois ou até três aspectos pelos quais a inigualável cantora mais merece ser lembrada.
Seria pela interpretação de ‘Arrastão’, quando em abril de 1965 venceu o 1º Festival da Música Popular Brasileira? Ou, na sequência, pelas gravações de ‘Upa Neguinho’, Águas de Março’ ou ‘Madalena’? Ou, ainda, por ‘Aos Nossos Filhos’, um grito contra a ditadura que Ivan Lins compôs e gravou em 1978, e que Elis elevou à condição de memorável na gravação de 1980?
Ou, devemos considerar ‘O Bêbado e a Equilibrista’, que por sua voz transformou-se em hino? Bem... tem a Elis Regina precursora da MPB; a Elis engajada nos movimentos político-culturais contra a ditadura; a Elis que lançou e fez famosos alguns dos principais nomes de nossa música; a Elis que, intérprete maior da Bossa Nova, descolava-se daquele próprio gênero pela admirável extensão vocal... e mais, mais e mais. Difícil dizer, não é? Elis, era Elis.
Voz foi inscrita como ‘instrumento musical’
Frank Sinatra teve alguns apelidos, entre eles – por total merecimento – The Voice (A Voz). Mas o grande nome do cinema mundial e dos shows esteve nos palcos por cerca de 60 anos. Elis, morreu aos 36.
Não deixa dúvida, ‘nossa’ Elis fez jus ao mesmo apelido. Sem exagero, estava em igual e como tal foi reconhecida. Mas, seria uma repetição – imitação involuntária – e a gaúcha inquieta, de pequena estatura e voz Mezzo-Soprano, nunca precisou imitar ninguém. Tinha luz própria.
Não por acaso, Elis Regina foi a primeira pessoa a inscrever a voz como se fosse um instrumento. E o fez oficialmente na Ordem dos Músicos do Brasil.
Interpretação à parte, sua voz era mais que um instrumento. Um espetáculo técnico que muito pouco pôde ser aprimorado: Elis nasceu com aquela voz, com um registro vocal único e uma afinação que só alguns pouquíssimos, no mundo, puderam exibir.
Nos anos 60, em seu programa de “Theme Time Rádio Four”, Bob Dylan citou Elis como uma das maiores cantoras do mundo, – considerações estas que nos anos seguintes viriam de outros nomes igualmente famosos.
No Olympia, duas vezes
Quase 4 décadas após sua morte, nem tudo é fácil de ser assimilado e talvez nem mesmo entendido. Elis Regina, a voz que deu visibilidade à música que João Gilberto criou, lançou o que hoje se entende por MPB. Ainda mais genuíno, num primeiro momento nem era tão fã assim da Bossa Nova (que ‘parava’ bem antes de onde sua voz chegava), com inclinação para o jazz, rock e samba.
Não à toa, foi especialmente influenciada por Ângela Maria (cantora a quem prestou inúmeras homenagens), na esteira do samba-canção, e acabou por consolidar o que pode ser entendido como estilo próprio: a afinação da Bossa Nova num ‘vozerão’ a perder de ouvidos.
Em outro capítulo inigualável da carreira de Elis, há exatos 50 anos a “pimentinha” quebraria nova barreira, tornando-se até então a única artista do mundo a se apresentar duas vezes num mesmo ano no Olympia de Paris, nada menos que o mais antigo espaço de espetáculos musicais da capital francesa e teatro musical mais conhecido do planeta.
Como registro, o Olympia recebeu nomes como Ray Charles, The Beatles, Tina Tuner, Louis Armstrong, Luciano Pavarotti, Charles Aznavour, The Rolling Stones, Edith Piaf, Madonna, Maysa (também brasileira), Céline Dion e alguns outros do mesmo naipe.
Política e nomes que lançou
Em alguns momentos da história, a esquerda brasileira soube ser tão cruel e perversa como a direita. Em 1968, Elis Regina deu entrevista a uma revista holandesa em que dissera que o Brasil era governado “por gorilas”.
Ano em que o regime militar, definitivamente, assumiu status de ditadura, Elis teve que se explicar. Com apenas 23 anos foi conduzida para um interrogatório de 4 horas. Sozinha, e cercada por pessoas hostis, a pressão psicológica e a intimidação eram claras.
Não sabia se dali sairia presa ou se poderia voltar para casa. Aliás, não fosse pelo tamanho da popularidade que já então exibia, e possivelmente seria jogada em algum porão.
Marcada desde então pelo regime dos generais, em 1972 foi convocada pelos militares para cantar o Hino Nacional durante as Olimpíadas do Exército. Se não cumprisse a determinação, sabe-se lá o que aconteceria com ela e seus filhos.
Mas a esquerda (a mesma esquerda que ela tanto defendeu) não perdoou. Caiu em cima com patrulhamento insano, só muitos anos depois reparado.
Elis, a cantora brasileira só comparada a Ella Fitzgerald e Billie Holiday, responsável por lançar ou impulsionar a carreira de gente até então pouco conhecida como Ivan Lins, Tim Maia, João Bosco, Aldir Blanc, Milton Nascimento, Belchior, Guilherme Arantes... e tantos outros, teve que enfrentar dias de penúria junto ‘aos seus’. Coisas do Brasil!
Brilho que não se apagou
A excepcional trajetória de Elis foi construída em pouco mais de 15 anos de carreira. Isso, por si só, diz tudo.
Impaciente, contraditória e temperamental. No palco – como na vida – irriquieta e espevitada; no instante seguinte, serena. Sorrisos e lágrimas reunidos numa mesma interpretação. Única.
Para os baixos padrões engessados de hoje, quando os dias não eram assim... politicamente incorreta. E não podia ser diferente. Uma artista brasileira como ela só.
Elis Regina é mãe de João Marcelo Bôscoli, filho de seu primeiro casamento com Ronaldo Bôscoli; e Pedro Camargo Mariano e Maria Rita, de seu segundo casamento com César Camargo Mariano.
Morreu de overdose em 1982. Tinha 36 anos.
O furacão genioso se apagou. Mas o brilho da estrela segue reluzente.
Aos Nossos Filhos
Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim
Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim
Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim
E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim
E quando largarem a mágoa
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim
Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim
Digam o gosto pra mim
(De Ivan Lins, dimensionada a partir da gravação de Elis)

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