Crítica de cinema:Coringa - Sorria
*Felipe Fernandes 05/10/2019 13:39 - Atualizado em 14/10/2019 13:06
O Coringa sempre foi um dos personagens mais marcantes dos quadrinhos e da sétima arte. Talvez pelo aspecto visual ou pela loucura inerente, é um personagem que nunca precisou de muita explicação, suas características visuais e comportamentais sempre passaram uma mensagem muito clara, fato que sua origem nunca foi um campo muito explorado.
Esse talvez seja o elemento mais perigoso na adaptação de um filme solo do vilão, que tem por objetivo contar a origem do personagem. Mas o longa de Todd Phillips vai muito além dessa questão ao abandonar ligações estéticas e narrativas com as recentes adaptações cinematográficas dos quadrinhos e até mesmo com o material fonte. “Coringa” (Joker, 2019) é um profundo e intimista estudo de personagem que vai além da maquiagem de palhaço.
Escrito pelo diretor Todd Phillips e por Scott Silver, o filme é situado entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, período de recessão na economia americana, cenário perfeito para desenvolver aspectos sociais importantes, que funcionam como pano de fundo e potenciais motivações para o desenvolvimento da trama.
O protagonista Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) surge em seu primeiro momento já maquiado como palhaço em uma das imagens mais fortes do filme, que demonstra o estado de espírito do personagem. A introdução é eficiente em mostrar o estado de miséria social e mental do personagem e daquela sociedade.
Aparentemente influenciado pela mãe, Arthur quer provocar alegria e sorrisos em uma sociedade decadente, onde a miséria e a desigualdade são a regra. Em sua primeira caminhada para casa, vemos o personagem com um andar pesado, cabisbaixo, caminhando por ruas sujas e escuras, subindo pesadamente uma escada que têm uma simbologia importante dentro do filme.
O filme trabalha muito os contrapontos e os usa de maneira eficiente, buscando o desconforto. O próprio protagonista tem um distúrbio que funciona muito bem com o personagem, em que ele começa a gargalhar em situações em que fica tenso, gerando um estranhamento muito bem-vindo à a obra.
Outro contraponto interessante é a passividade do protagonista. Ao contrário do que possa imaginar, ele não é um personagem violento, esse que é um elemento fundamental para que possamos de alguma forma nos identificar com ele. Prova disso é que o ato que gera o ponto de virada no filme é uma reação, atitude que mostra a ele que é possível reagir, em uma cena que é seguida de uma das cenas mais bonitas do ano, o momento em que Arthur começa a se reconhecer, em uma dança levemente iluminada pela cor verde e que termina com o personagem se encarando em um espelho; um reflexo não só visual, mas narrativo.
O roteiro ainda traz elementos do passado do personagem, que se misturam com a família do então jovem Bruce Wayne. E se essa associação soa desnecessária e forçada durante grande parte do filme, um dos momentos finais do longa faz tudo valer a pena em um dos momentos mais importantes na compreensão da forma de pensar e de enxergar o mundo do comediante. Outra ligação com o universo do homem morcego é a cidade de Gotham, que aqui é claramente retratada como Nova York, mas em uma versão degradante. É nesse cenário que o diretor Todd Phillips trabalha a psique de personagem.
Usando takes claustrofóbicos, visando causar desconforto, geralmente Phoenix surge muito próximo da câmera, trabalhando essa ideia de proximidade, de intimidade com o personagem. Com uma câmera levemente instável, o diretor Todd Phillips cria imagens poderosas, sempre focado na figura de Joaquim Phoenix e trabalhando alguns simbolismos como reflexos, grades e a já citada escadaria.
Reparem como Phoenix surge em algumas cenas-chave (que só vamos descobrir sua importância mais para frente) com o rosto ocupando quase todo o quadro e atrás de grades, numa clara alusão à personalidade enclausurada de Arthur que vai ganhando força.
A escadaria, presente em pôster e nos trailers, também traz um simbolismo interessante. Notem como ele sempre surge subindo as escadas, de forma pesada, quase se arrastando. O único momento em que ele surge descendo as escadas é o seu momento de libertação, quando ele já devidamente trajado, dançando, com uma postura corporal totalmente diferente da apresentada até ali, tendo o ato de descer representando a decadência moral do personagem e a profundidade da libertação do Coringa.
O filme ainda consegue brincar com momentos de humor, mas um humor distorcido, como o representado pelo personagem. O filme faz uso de uma brilhante trilha sonora para reforçar essa característica, e isso acontece desde a introdução. Não por acaso o título do filme surge em um tom amarelo, ocupando toda a tela, enquanto ao fundo vemos Arthur espancado em posição fetal.
É seguro dizer que Joaquim Phoenix tem uma das melhores atuações do ano e de sua carreira. É notória a imersão do ator naquele personagem. Mais uma vez ele entrega um trabalho intenso, que impressiona, causa desconforto, repulsa e faz rir em momentos não agradáveis.
Phoenix surge muito mais magro que o habitual, e seu físico esquelético é parte importante da composição do personagem, não só por passar fragilidade, mas em algumas cenas seus ossos protuberantes causam incômodo. Seu trabalho corporal também impressiona. A forma segura e ereta com que ele passa a se mover após sua libertação, em contraste com o andar arrastado do início, mostra a mudança de postura e de atitude do personagem.
A gargalhada é um elemento fundamental na composição de Phoenix. O personagem passa o longa inteiro trabalhando essa risada, como se buscasse sua própria voz, uma forma de se expressar, sendo ela um elemento fundamental na construção do personagem.
O filme usa dois atos na composição do personagem e em sua transformação, entregando um terceiro ato apoteótico. O Coringa se torna o símbolo de uma sociedade doente, e na reação dos desfavorecidos, uma situação que não é forçada pelo personagem, mas que ganha nele a imagem ideal.
O filme nunca sai de perto do personagem, nunca deixa o contexto sobressair. É uma jornada pessoal intensa e desgastante, até mesmo para o espectador, que em sua maioria deve sair esgotado emocionalmente da exibição. A sequência final é brilhante em estabelecer a forma de agir e pensar do Coringa. A mistura de humor e violência, elementos tão contraditórios, mostra a complexidade e o potencial de um personagem que ultrapassou barreiras e ganhou seu próprio palco.

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