Consome-se o tempo, a realidade, a vontade, o corpo, a fome, a culpa, o planeta. Consumir para não ser consumido dentro dos padrões inalcançáveis das fotos instagramadas.
Na prateleira do comercial televisivo, brota uma vontade no sofá que leva a mão ao celular, alcança o comodismo da entrega sob a ilusão da economia de um cupom que tabela o preço do produto e fecha o ciclo da compra facilitada com o consumidor confortável. Tudo no trabalho incansável de quem sua para manter o conforto de outros, alimentando a máquina que mói mão a mão no dia que não passa.
Produtos: enquanto parafusos que fixam a engrenagem ao eixo, cada consumidor é usado até o fim enquanto crê estar usando o que, na verdade, ceifa a natureza do ato de existir. Passo a passo, é necessário algo novo para passar o tempo que não cessa – até ser preciso um novo consumir ou mesmo um novo consumidor. O novo é o agora que se quer na necessidade que se cria a partir do passado que se descarta para obter outro idêntico, mas com embalagem novíssima.
Assim, moramos e vestimos e assistimos e lemos e sentimos e viajamos e seguimos na rede social com base em um padrão imperceptível que leva a crer que cada decisão é personalizadamente única – perdida na multidão de decisões igualmente direcionadas por um único gesto, uma única aparição midiática.
Nessa lógica de consumo, o ser humano nasce programado para extrair cada benefício de tudo ao redor ou jogar fora para trocar quando valer mais a pena, o que cada indivíduo projeta em suas próprias relações – com os outros, com os produtos e com o planeta e seus recursos. Mas ninguém nota que não será possível consumir até o fim sem, antes, ser consumido pela escassez inobservada.
Isso porque não se percebe – os sinais são inúmeros, mas os olhares, não – que a lógica predatória do consumo carrega consigo o próprio gesto impetuoso de tirar o ar o chão a terra a comida e a própria mão que clica no carrinho do aplicativo do celular, pois, na ausência de uma, haverá outra mão interessada em clicar.
E as necessidades e desejos se correlacionam: o prazer leva à doença, que leva ao remédio, que leva a um novo hábito guiado por outros desejos e necessidades artificiais, num ciclo que se fecha se renova mês a mês no saldo da conta-salário.
No acordar de cada hora para fazer dia, há trabalho e consumo e consumo de trabalho para valer a pena o que se gasta fazendo tudo ficar igual – e necessário - para cada mente que conecta sinapses de prazer a cada “blip” do celular.
Assim é a experiência personalizada: humanidade homogênea sob a dinâmica que só evidencia e aprofunda as desigualdades de quem ainda não percebeu seu papel na lógica das experiências uniformizadas.
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Sobre o autor
Ronaldo Junior
[email protected]Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.