O déspota das joias
Edmundo Siqueira 14/03/2023 20:17 - Atualizado em 14/03/2023 20:25

A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista e teocrática. Em outras palavras: um país em que o rei tem o poder supremo, acima de qualquer lei, e as decisões políticas, jurídicas e policiais são submetidas às normas religiosas. Hoje, a palavra final no reino é de Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro que virou notícia no Brasil ao presentear o ex-presidente Bolsonaro e a ex-primeira-dama com joias no valor de R$16 milhões.

A partir daí, um país que apresenta (desde sempre) uma profunda desigualdade como o Brasil, ficou envolvido com joias milionárias e sheiks árabes. Segundo apuração da imprensa, o regalo foi entendido por Bolsonaro como sendo seu, não como um bem do Estado brasileiro, como é, de fato.

Representação em telenovela dos coronéis.
Representação em telenovela dos coronéis. / Reprodução
A confusão do público com o privado não é uma exclusividade de Bolsonaro. A história do Brasil é marcada por coronelismos e governantes que personalizam o poder, extrapolando seus comandos em territórios federativos, consolidando dinastias políticas — como Bahia e Maranhão, por exemplo.
Em cidades pequenas, antes da Nova República, a figura do mandante, que detinha o poder político e econômico, era tratada por “coronel”, uma patente militar, não por coincidência.

Destratar a coisa pública como sendo “de ninguém” é um traço cultural do brasileiro, que entende o público não como algo de todos, mas algo que não tem dono. Na democracia representativa, quem é investido em cargos públicos deve obedecer preceitos éticos e de liturgia (modos de agir e se comportar enquanto investido do cargo) não apenas por uma obrigação legal, mas para servir de exemplo e espelho de uma sociedade que respeita a coletividade que está inserida.

Porém o oposto acontece com frequência. Políticos como Bolsonaro agem em afronta a esses preceitos, quando estabelecem conflitos constantes com outros poderes, usam palavras ofensivas, não respeitam a ciência e atentam contra o regime que representa — como o sistema eleitoral, por exemplo.
Então seria utópico ou incoerente pensarmos em representantes políticos agindo eticamente quando originam de uma sociedade incapaz de agir assim?

Ao mesmo tempo que parece uma pergunta impossível de ser respondida, é possível pensar que existam pessoas públicas que estão imbuídas no intuito de servir, de agir com abnegação e didaticamente, onde o público e o privado estejam separados por limites intransponíveis.
Assim como indivíduos antiéticos e distantes do sentido real da res publica (coisa pública) possuem o poder de influenciar a sociedade, o contrário também pode ser verdadeiro, e exemplos virtuosos possam surtir efeitos em mesma medida.

A partir desses preceitos, caímos em outro problema de fundo: personalismos exacerbados. Ao buscarmos bons exemplos — ou sermos influenciados pelos maus — estamos, em certa medida, à espera que “alguém faça alguma coisa”, ou que “salvadores da pátria” venham para uma rendição coletiva. Quando uma sociedade depende exclusivamente de governantes que a guie, sem senso crítico, participação e cidadania, está semeando um campo que será fértil para o nascimento de déspotas e tiranos.

O tirano se difere do déspota, representando uma figura da política grega que refere-se ao “homem excepcional”, alguém que reúna características grandiosas, podendo ser força física, grande intelectualidade, clarividência política, oralidade ou persuasão. Seria alguém chamado pelo povo para salvá-lo de uma crise, de uma guerra ou da baderna generalizada, que governará com o consentimento coletivo, com poderes de suspender leis antigas e criar outras, novas.

Já o déspota é alguém da sociedade, investido de poderes quase ilimitados. É o governante que percebe a coisa pública como sendo dele, algo como um “chefe de família”, trazendo relações fundamentais e históricas para o jogo político: a do senhor e o escravo, a do marido e a mulher, e a do pai e os filhos. O déspota é o governante que acredita que tem uma missão dada por ordens superiores, de cunho religioso, onde deve ter o poder absoluto, inclusive sobre as pessoas (representantes dos escravos, da mulher, dos filhos e parentes) que dele dependem para sobreviver ou usufruir de direitos básicos como saúde e segurança pública.

A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das normas e das regras que definem a vida coletiva, que ele entende como familiar, confundindo o público com o privado, novamente.

Déspotas — presidentes brasileiros ou príncipes sauditas — subvertem o regime democrático justamente por não saber viver nele. Negar vacinas durante uma pandemia devastadora, como fez Bolsonaro, ou condenar jornalistas opositores à morte e ao esquartejamento, como é acusado Mohammad bin Salman, representa a ausência de entendimento mínimo para viver em sociedade.

Receber um presente de 16 milhões de reais enquanto chefe de Estado, em missão oficial, e acreditar que ele deveria ser de sua propriedade privada, é nada mais que despótico.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]