A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista e teocrática. Em outras palavras: um país em que o rei tem o poder supremo, acima de qualquer lei, e as decisões políticas, jurídicas e policiais são submetidas às normas religiosas. Hoje, a palavra final no reino é de Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro que virou notícia no Brasil ao presentear o ex-presidente Bolsonaro e a ex-primeira-dama com joias no valor de R$16 milhões.
A partir daí, um país que apresenta (desde sempre) uma profunda desigualdade como o Brasil, ficou envolvido com joias milionárias e sheiks árabes. Segundo apuração da imprensa, o regalo foi entendido por Bolsonaro como sendo seu, não como um bem do Estado brasileiro, como é, de fato.
A confusão do público com o privado não é uma exclusividade de Bolsonaro. A história do Brasil é marcada por coronelismos e governantes que personalizam o poder, extrapolando seus comandos em territórios federativos, consolidando dinastias políticas — como Bahia e Maranhão, por exemplo.
Destratar a coisa pública como sendo “de ninguém” é um traço cultural do brasileiro, que entende o público não como algo de todos, mas algo que não tem dono. Na democracia representativa, quem é investido em cargos públicos deve obedecer preceitos éticos e de liturgia (modos de agir e se comportar enquanto investido do cargo) não apenas por uma obrigação legal, mas para servir de exemplo e espelho de uma sociedade que respeita a coletividade que está inserida.
Porém o oposto acontece com frequência. Políticos como Bolsonaro agem em afronta a esses preceitos, quando estabelecem conflitos constantes com outros poderes, usam palavras ofensivas, não respeitam a ciência e atentam contra o regime que representa — como o sistema eleitoral, por exemplo.
Ao mesmo tempo que parece uma pergunta impossível de ser respondida, é possível pensar que existam pessoas públicas que estão imbuídas no intuito de servir, de agir com abnegação e didaticamente, onde o público e o privado estejam separados por limites intransponíveis.
A partir desses preceitos, caímos em outro problema de fundo: personalismos exacerbados. Ao buscarmos bons exemplos — ou sermos influenciados pelos maus — estamos, em certa medida, à espera que “alguém faça alguma coisa”, ou que “salvadores da pátria” venham para uma rendição coletiva. Quando uma sociedade depende exclusivamente de governantes que a guie, sem senso crítico, participação e cidadania, está semeando um campo que será fértil para o nascimento de déspotas e tiranos.
O tirano se difere do déspota, representando uma figura da política grega que refere-se ao “homem excepcional”, alguém que reúna características grandiosas, podendo ser força física, grande intelectualidade, clarividência política, oralidade ou persuasão. Seria alguém chamado pelo povo para salvá-lo de uma crise, de uma guerra ou da baderna generalizada, que governará com o consentimento coletivo, com poderes de suspender leis antigas e criar outras, novas.
Já o déspota é alguém da sociedade, investido de poderes quase ilimitados. É o governante que percebe a coisa pública como sendo dele, algo como um “chefe de família”, trazendo relações fundamentais e históricas para o jogo político: a do senhor e o escravo, a do marido e a mulher, e a do pai e os filhos. O déspota é o governante que acredita que tem uma missão dada por ordens superiores, de cunho religioso, onde deve ter o poder absoluto, inclusive sobre as pessoas (representantes dos escravos, da mulher, dos filhos e parentes) que dele dependem para sobreviver ou usufruir de direitos básicos como saúde e segurança pública.
A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das normas e das regras que definem a vida coletiva, que ele entende como familiar, confundindo o público com o privado, novamente.
Déspotas — presidentes brasileiros ou príncipes sauditas — subvertem o regime democrático justamente por não saber viver nele. Negar vacinas durante uma pandemia devastadora, como fez Bolsonaro, ou condenar jornalistas opositores à morte e ao esquartejamento, como é acusado Mohammad bin Salman, representa a ausência de entendimento mínimo para viver em sociedade.
Receber um presente de 16 milhões de reais enquanto chefe de Estado, em missão oficial, e acreditar que ele deveria ser de sua propriedade privada, é nada mais que despótico.