Cinema - Trágica ópera espacial
Felipe Fernandes - Atualizado em 15/11/2021 19:05
Considerada uma das maiores sagas já escritas, “Duna”, de Frank Herbert é um dos maiores clássicos da ficção científica. Uma obra única, que constrói um futuro repleto de tecnologia, e fala de política, colonialismo, ecologia e religião, temas que são abordados de formas ainda atuais, construindo um universo fascinante em uma obra rica em subtextos, personagens e elementos fundamentais a diferentes culturas.
Não por acaso, a obra máxima de Herbert vem desde a época de seu lançamento encantando cineastas que veem nela um forte potencial cinematográfico. Passando pela já lendária versão do chileno Alejandro Jodorowsky (considerado por muitos o maior filme jamais feito e que rendeu um documentário bem interessante) e pela de David Lynch (um filme problemático, com uma produção caótica, e até hoje renegado por seu diretor), a nova versão chega com a difícil missão de adaptar uma obra repleta de elementos, com uma forte base de fãs, que influenciou diretamente muitas das obras mais famosas do gênero lançadas posteriormente.
Adaptar “Duna” é uma tarefa complexa, que tem no diretor canadense Denis Villeneuve mais um cineasta fã da série de livros que sonhou com a oportunidade e conquistou o cargo de diretor da nova empreitada. Após lançar dois sci-fis seguidos muito elogiados, Villeneuve montou um projeto corajoso. O diretor e roteirista mostrou ter aprendido com os erros de seus predecessores, fazendo da sua adaptação uma empreitada corajosa.
Passada em um futuro distante, o universo é dominado por um império dividido por casas. A casa Harkonnen domina o planeta deserto Arrakis, um lugar inóspito, mas que é fonte da especiaria, matéria-prima responsável pelas viagens espaciais (uma espécie de petróleo arenoso), caraterística que faz dela valiosíssima. Após decisão do imperador, os Harkonnen são obrigados a se retirar do planeta, que passa a ser dominado pela casa Atreides, liderada pelo Duque Leto (Oscar Isacc).
O que parecia uma decisão visando uma melhor administração do planeta, na verdade, é um plano do imperador, que teme a popularidade do Duque e acaba deixando a casa Atreides em uma posição vulnerável, criando uma oportunidade para a casa Harkonnen se livrar de uma vez por todas da casa rival. Ao mesmo tempo, Paul Atreides (Timothée Chalamet), filho do duque, passa a ter sonhos intensos com Arrakis e os Fremen, povo nativo do planeta que vive sob as areias do deserto.
Quem conhece a obra de Herbert sabe que é impossível adaptar o livro em um longa de pouco mais de duas horas. Aprendendo com o erro de seus antecessores, o diretor Denis Villeneuve tomou a inteligente e corajosa decisão de dividir a obra em dois filmes, decisão escondida pelo marketing e revelada apenas no início do longa. A decisão se mostra corajosa, já que a sua segunda parte só foi confirmada recentemente, dando ao longa o risco de ficar inacabado.
O roteiro de Villeneuve junto a Eric roth e Jon Spaiths é eficiente em inserir várias informações importantes, como a forma hierárquica daquele império, a questão das casas, suas diferenças, passando pelas características de Arrakis e pela importância da especiaria, sem soar confuso ou didático e sem quebrar o ritmo do filme. É muita informação importante passada ao público sem que a história deixe de progredir.
Trabalhando com diversos personagens, a forma encontrada pelos realizadores para apresentá-los é usar o protagonista Paul como nosso guia naquele universo. Muitas das informações que o espectador recebe são apresentadas a ele. O primeiro momento de diversos personagens se dá ao encontrar Paul, uma ferramenta que é eficiente em desenvolver a relação desses personagens com o protagonista e em criar uma sensação de relação próxima entre os cabeças da casa Atreides.
Personagens importantes como Duncan (Jason Momoa) e Garney (Josh Brolin) quase não são desenvolvidos, um problema aceitável, tendo em vista a quantidade de questões que o filme precisa abordar. Ao menos o casting certeiro traz atores carismáticos, que conseguem fazer com que o espectador consiga se identificar com esses personagens, mesmo com pouco tempo de tela.
A relação de Paul com a questão de sua provável messianidade é trabalhada através dos sonhos, uma decisão curiosa e perigosa (já presente na obra de Herbert), já que ela não encontra muito eco nessa primeira parte, mas será primordial no desenrolar do restante de sua jornada e na ligação de Paul com os Fremen. O povo do deserto é pouco explorado nessa primeira parte, mas sua importância, sua força e seus costumes são bem estabelecidos, o que já não acontece com os Sardaukar, tidos como a elite do exército imperial. Nunca conseguimos sentir essa força.
Visualmente, o filme é arrebatador; uma ópera espacial épica de escala gigantesca. E é justamente essa característica que reforça a adaptação como obra cinematográfica, daqueles para assistir na melhor sala de cinema que você encontrar. Trabalhando as diferenças das casas por sua estética, o filme trabalha aquele universo de forma sóbria, fugindo de eventuais exageros, mostrando como as casas são ricas em história, cultura, mas são forjadas na tragédia. E o filme entende isso, criando uma ambientação sombria para as duas casas, com a diferença de a casa Harkonnen ter uma estética quase que de pesadelo, o que reforça a natureza extremista daquele núcleo.
Villeneuve trabalha o contraste de ambientes. Caladan é exatamente o oposto do que se espera de Arrakis, cheia de verde e com uma vasto litoral repleto de água. Essa proposta intensifica a sensação de como os Atreides vão para um ambiente desconhecido em Arrakis. O planeta deserto é, por natureza, hostil. A infinitude da areia, o calor e os segredos daquele local criam essa sensação. Sem falar, claro, no povo Fremen e nos vermes da areia.
Renunciando o desenvolvimento de vários personagens em função da trama principal (a renúncia é parte fundamental de toda adaptação), a escolha do elenco se mostra muito acertada. Mesmo que alguns grandes atores tenham pouco tempo de tela, o carisma e o tom certo dos personagens amenizam essa decisão.
Oscar Isaac, Josh Brolin e Jason Momoa dão o carisma e representam a força da casa Atreides. Stellan Skarsgard (emulando Marlon Brando em “Apocalipse Now”) consegue, com muito pouco, criar um Barão Harkonnen repugnante e ameaçador. O filme ainda se dá ao luxo de deixar atores como Javier Bardem, Zendaya e David Bautista como coadjuvantes de luxo, personagens que vão ganhar força na segunda parte.
O grande destaque fica para Rebecca Ferguson e Timothée Chalamet. Uma das principais relações da história é bem desenvolvida, estabelecendo uma forte ligação entre os dois, que compartilham uma ligação única, chegando até mesmo a desenvolverem uma linguagem de sinais que aparentemente só é entendida por eles. Além, é claro, de toda a ligação referente ao treinamento das Bene Gesserit.
Duna (Parte 1) é sem dúvida uma grande vitória de Villeneuve que finalmente consegue adaptar a obra de Herbert com a qualidade que lhe cabe. A decisão de dividir a obra incomodou grande parte do público, mas se mostra primordial para a qualidade da obra não só como adaptação, mas como obra cinematográfica.
Encerrado em um momento simbólico, extremamente importante na transformação de Paul e que se mostra perfeito, pois vai encontrar eco no final da parte 2, o longa termina com a ideia de que “é apenas o começo” de uma jornada trágica de vida, morte, transformação e messianidade.

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