O que Hamlet diria sobre Bolsonaro? A tragédia pode ser evitada?
10/09/2021 22:23 - Atualizado em 10/09/2021 22:25
Ser ou não ser? A tragédia que Bolsonaro impôs ao Brasil
Ser ou não ser? A tragédia que Bolsonaro impôs ao Brasil
Há algo de podre no reino da Dinamarca. Se formos tratar da realidade brasileira, a frase extirpada de Hamlet, na peça homônima de William Shakespeare, altera-se apenas na condição geográfica e temporal — sempre houve algo de podre no Brasil. E o senhor Jair Messias Bolsonaro vem mantendo o fétido em nossa República, a despeito do credo inocente (?) que uma parcela da sociedade nutria (nutre?). E mais: seu governo é uma tragédia grega, sem precedentes mesmo em um país de tantas já vividas.
Em Hamlet, a loucura — a real e a fingida — é trabalhada como forma de catarse. Explorando temas como traição, vingança, incesto, corrupção e moralidade. A tragédia familiar da personagem principal — seu irmão Cláudio matou seu pai, o rei, assumindo o reino e casando-se com sua mãe — é o pano de fundo para as reflexões humanísticas da obra, produzindo reflexões necessárias sobre o sofrimento opressivo, a raiva fervorosa, e os sentimentos opostos, como amor e a temperança. A hybris em Hamlet acontece pela dominação dos demônios internos sobre sua consciência.
Hybris é aquilo que se mostra desmedido, que ultrapassa limites e gera a ira dos Deuses, devendo ser severamente castigado a fim de que se restaurasse a ordem do universo.
Na tragédia bolsonarista, muitos foram os momentos de exagero e desmedida do herói — considerando que Bolsonaro seja o protagonista. Desde que assumiu o “reino”, ele vociferou contra tudo e todos. Casos de corrupção vieram à tona, sua representação partidária foi perdida, elegeu inimigos imaginários, declarou guerra ao progressismo e a imprensa, censurou comportamentos alheios, demonstrou falta de conhecimento sobre temas fundamentais, e praticou, através de sua verborragia contumaz, preconceitos de toda ordem.
Como toda tragédia, o destino tratou de advertir o leitor ou espectador (aqui representada pela população) que há sempre espaço para o pior. Que aconteceu. A mais grave pandemia de nossa era tratou de coincidir com o "reinado" de Bolsonaro, produzindo a hybris perfeita — e uma pilha gigantesca de mortos.
A tragédia anunciada 
Em uma escalada insana, “nosso” “rei” convocou seus súditos para comparecimento em massa à praça pública, com data marcada, 7 de setembro, para que finalmente tivesse apoio popular para tornar realidade seus sonhos totalitários mais profundos. O chamado foi atendido. Um mar de gente enfurecida, paradoxalmente, gritava palavras de ordem contra instrumentos que impediam o totalitarismo e a supressão total da própria liberdade popular.
Vista aérea da manifestação em apoio a Bolsonaro em São Paulo. Grandes comícios foram convocados para o Dia da Independência
Vista aérea da manifestação em apoio a Bolsonaro em São Paulo. Grandes comícios foram convocados para o Dia da Independência / (FOTO: MIGUEL SCHINCARIOL / AFP)
Após o episódio de delírio coletivo, Bolsonaro foi surpreendido pela força da democracia. A tragédia brasileira ganhos contornos clássicos. A harmatia — o erro fatal do herói — aconteceu inesperadamente. Assim como em Hamlet, a harmatia veio pela ação de forças superiores às do herói, que o levou ao reconhecimento da falha. Por aqui, a personagem que provocou o recuo ao erro trágico, foi um “ex-rei”: Michel Temer.
As tragédias recorrentes 
Nosso “herói” Bolsonaro, e consequentemente sua eleição, é resultado de uma bipolaridade coletiva — e autofágica — que aflige nosso "reino" há décadas. Na tragédia literária, a bipolaridade é um recurso retórico, faz com que o leitor perceba o bem e o mal de maneira muito nítida. E, na comparação negativa, provoque a falsa sensação de potencialização da bondade e da maldade. Bipolaridade que afeta não só a “realeza”. Ao povo, levou a ilusão de que a corrupção estaria apenas em um partido, ou um grupo, e que bastaria que esse partido ou grupo saísse do poder para que o reino da justiça e da igualdade fosse, enfim, uma realidade. Nada mais ilusório. O mito da corrupção isolada é tão fantástico quanto o velho Noel e suas renas voadoras.
Hamlet, na tragédia shakespeariana, pôde ver a corrupção em seu núcleo mais próximo. No leito de sua mãe. Percebeu que o mal estaria em todos os lugares, inclusive nele. E por vezes é exorcizado no outro. A corrupção, voltando ao nosso “reino”, começa na população. Ela é gritante quando carros andam pelo acostamento, quando se paga uma propina ao guarda, quando sonega-se impostos com recibos comprados, ou quando se assina a folha de presença na faculdade, ouvindo uma aula de ética. A corrupção é endêmica, onde mesmo sem aumento de casos, convive-se com a doença.
Voltando a S
hakespeare, o personagem Polónio, conhecido por ser um sofista, alguém de etiqueta e retórica usuais, pai de Ofélia e Laertes, ofertou ao segundo filho conselhos valiosos: Ouvir a todos, mas falar com poucos; não expressar tudo que se pensa; e, ser amistoso, mas nunca vulgar. São alguns deles. Bolsonaro, em sua tragédia pessoal, deveria ouvir Polónio. Assim como o próprio Hamlet: “Tudo dentro de ti está confuso e, no entanto, penteias a superfície”.
Após aconselhar-se com o "ex-rei" Temer, Bolsonaro recua das ameaças e da retórica golpista. Porém, nada leva a crer que a harmatia bolsonarista provocará, na vida real, mudança definitiva de pensamento ou de método. Possivelmente, as tragédias e peças teatrais não estejam presentes na escrivaninha palaciana, mas seria deveras proveitoso uma, mesmo que breve, leitura. Por exemplo, encontraria em “Rei Lear”, outra peça shakespeariana, uma frase do bobo da corte, que poderia levar o presidente a analisar seu destino: “Pobre Lear, que ficou velho antes de ficar sábio”.
Ser ou não ser? Pensará Bolsonaro, assim como pensou Hamlet, no "monólogo da caveira"? Fará ele reflexões sobre o próprio destino, sendo alguém com demonstrada incapacidade cognitiva? O que é mais nobre para a alma? Suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes?
Para que exista "menos de podre no reino chamado Brasil", a maioria da população, inclusive as diversas correntes ideológicas democratas, deverão contestar a lógica implícita em Hamlet, que diz que a consciência nos trona covardes. E principalmente não agir em catarse aristotélica, depositando no eleitor de Bolsonaro (em sua totalidade) todo mal e fascismo, fazendo então que seja possível sentir-se melhor e purificado. A tragédia não é inevitável.
 
 

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    Edmundo Siqueira

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