Artigo - Flamengo, Liverpool e moleques ressurretos
Aluysio Abreu Barbosa 07/12/2019 15:34 - Atualizado em 17/12/2019 17:27
Alexandre Vidal/Flamengo
Foi por conta do Flamengo de Zico que começou a acompanhar futebol. Ainda intuitivamente no Campeonato Brasileiro de 1980. Mas já com consciência, mais do que talvez fosse normal a um moleque de 9 anos, a partir da conquista épica da Libertadores da América por aquela equipe. Foram três jogos contra o violento e desleal Cobreloa, do Chile. Era o ano da Graça de 1981, hoje tão cantado pela maior torcida da Terra. Que seria encerrado em 13 dezembro com a conquista do Mundial, no passeio de 3 a 0 sobre o Liverpool. De Campos com os olhos em Tóquio, virou a primeira madrugada da sua vida. Marcada a ferro quente na alma de criança, ela nunca mais seria a mesma. Pertencia a algo maior. Até a última respiração, teria tribo e Rei.
A partir da tradição oral passada pelo pai, tricolor e ex-boleiro, campeão juvenil de Campos pelo Rio Branco, aprendeu também que o futebol existia antes da sua tomada de consciência dele. Ainda sem internet ou as facilidades do Youtube, absorveu o que pôde do vivido e contado pelos mais velhos. E leu o que lhe caísse às mãos sobre os grandes times e jogadores do passado. Além do futebol, o interesse se espraiou sobre outros esportes. Cujos gênios, sem nenhum favor à sua exceção humana, ganharam a exata dimensão de Da Vinci, Einstein, Darwin, Shakespeare, Pessoa, Kurosawa, Beethoven, Parker, Billie, Cartola ou Jobim.
Ouviu e leu, mais do que pôde ver em imagens do futebol antes dele. E creu nos grandes times de clube que não testemunhou. Em ordem cronológica, deu fé ao River Plate de La Bruna, Moreno e Pedernera; ao Vasco de Ademir, Heleno e Danilo; ao Hovénd de Puskás, Kocsis e Czibor; ao Real Madrid de Di Stéfano, Puskás e Kopa; ao Peñarol de Cubillas, Spencer e Pedro Rocha; ao Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos; ao Santos de Pelé, Coutinho e Pepe; ao Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes e Piazza; ao Ajax de Cruyff, Neskens e Kroll; ao Bayer de Beckenbauer, Gerd Müller e Breitner; ao Internacional de Falcão, Carpegiani e Figueroa.
Do que teve a sorte da consciência em tempo presente, viu aquele Flamengo de Zico, Leandro e Júnior imenso ao se apoiar nos ombros de gigantes: o Atlético Mineiro de Reinaldo, Cerezo e Luisinho; o Grêmio de Renato, Caju e Mário Sérgio; o Fluminense de Assis, Washington e Romerito. E o que dizer da Juventus de Platini, Boniek e Paolo Rossi; do Napoli de Maradona, Careca e Alemão; do Estrela Vermelha de Savicevic, Prosinecki e Pancev; do Milan de Van Basten, Rijkaard e Maldini; do São Paulo de Raí, Müller e Palinha; do Palmeiras de Edmundo, Rivaldo e Roberto Carlos; do Boca Juniors de Riquelme, Palermo e Tévez; do Barcelona de Messi, Xavi e Iniesta; do Real Madrid de Zidane como jogador ou técnico, quando reensinou Cristiano Ronaldo a jogar, municiado por Kross e Modric?
Foram times e craques sem os quais não se conta a história do futebol. Alguns de seus remanescentes ainda a escrevem. Em épocas, lugares e culturas diferentes, quantos moleques não os levariam vida afora, colados na retina e na alma? No critério subjetivo da opinião, era possível afirmar: todos jogaram mais que o Flamengo de hoje. Mas, pelo menos entre os que viu, nenhum deles tinha a fome, a volúpia do atual campeão da Libertadores e do Brasileiro. Válido por este, na noite de quinta (05), a goleada de 6 a 1 do time do treinador português Jorge Jesus sobre o lanterna Avaí, no Maracanã sob chuva, talvez fosse irrelevante para evidenciar. Mas não foi. Bastou constatar que seu último gol, da promessa Reinier, menino de 17 anos, foi marcado aos 44 do segundo tempo, após belo cruzamento de Rafinha pela direita.
O que isso quer dizer? Simples! Rafinha é lateral-direito. O que um defensor de um time que já era campeão três rodadas antes fazia na ponta direita do ataque a um minuto do fim do tempo regulamentar, quando vencia por 5 a 1? Isso, enquanto seu técnico se esgoelava à beira do campo, entanguido como pinto recém-nascido, mandando seu time à frente. A despeito da qualidade técnica, nunca tinha visto um time de futebol com essa mesma obsessão em agredir o adversário. Tivesse que buscar paralelo no esporte, só encontraria no ex-campeão peso pesado de boxe Mike Tyson, em seu temível início de carreira.
Após a despedida do Maracanã neste ano histórico, o Flamengo hoje se despede do Brasil que conquistou. Será a partir das 16h, na Vila Belmiro, contra o Santos. Dezenove pontos atrás, o forte adversário é o segundo colocado na tabela do Brasileirão. E tem como treinador o argentino Sampaoli, outro estrangeiro batizado Jorge a lecionar na revolucionária temporada o que só agora começamos a aprender, meia década após a humilhação dos 7 a 1 impostos pela Alemanha: nossos técnicos padecem de crônica defasagem tática.
Se não possui o mesmo diferencial de outros tempos, a habilidade individual com a bola ainda caracteriza o futebol brasileiro. Ocorre que, pela evolução atlética dos tempos do River de La Bruna para cá, cada jogador hoje tem a posse de bola, em média, por apenas 2 minutos em cada 90 de jogo. No conceito que aplica à exaustão, Jesus só ensinava o que os 11 em campo precisam fazer nos 88 minutos restantes.
Não por acaso, o Flamengo derrubou cinco treinadores brasileiros, entre eles Felipão. Emblematicamente, era o técnico do Brasil contra a Alemanha em 2014. E responsável pelo que Caju, a despeito de ter brilhado no Grêmio de Renato, denuncia como imposição da escola gaúcha ao nosso futebol. Que deu ao Corinthians de Tite, hoje técnico da Seleção Brasileira, a Libertadores e o Mundial com justiça. Mas sem um único craque, como Sócrates, para lembrar.
Após encerrar o Brasileiro em que bateu todos os recordes da era dos pontos corridos, o Flamengo terá pela frente o Mundial, no Qatar. Seu primeiro compromisso será a semifinal do dia 17, contra o vencedor entre o árabe Al Hilal, campeão da Ásia, e o tunisiano Espérance, campeão da África. Quem ganhar vai à final do dia 21. Cujo adversário será definido na outra semifinal, do dia 18, entre o inglês Liverpool, campeão da Europa, e provavelmente o mexicano Monterrey, campeão da América do Norte.
Se reeditar a final contra o Liverpool, 38 anos depois da primeira madrugada em claro de um moleque de 9 anos, o time de Jesus tentará outra ponte Maracanã/Vila Belmiro. Nela, terá a chance de superar a marca alcançada no melhor ano do Flamengo de Zico. Que em 1981 foi campeão da Libertadores e do Mundial. Mas não do Brasileiro, que “só” venceu em 1980, 82, 83 e 87. Se conquistar o mundo que seu povo pede de novo, o Flamengo de 2019 se igualará à marca do Santos de Pelé. Único time da história a vencer no mesmo ano o Brasileiro, a Libertadores e o Mundial, bisou a façanha em 1962 e 63.
Dois técnicos conseguiram travar o time de Jesus. Vanderlei Luxemburgo com o Vasco e Marcelo Gallardo, com o River — respectivamente, no empate de 4 a 4 pelo Brasileiro e na derrota e 1 a 2 pela final da Libertadores — foram os únicos a conter a volúpia do Flamengo. Não o venceram, é verdade. Mas foram dois jogos épicos, em que a fome rubro-negra quase ficou à míngua. A equipe inglesa do técnico alemão Jürgen Klopp não terá essa preocupação.
Na final de sonhos do Mundial, a realidade seria um Liverpool partindo pra cima do adversário sul-americano. No jargão do MMA, seria trocação franca. Em alta intensidade, venceria quem acertasse e suportasse mais golpes. Além da qualidade técnica dos seus jogadores, preocupa a bola longa dos Reds na linha de defesa alta do Rubro-Negro. Foi com ela que o Atlético Paranaense empatou em 1 a 1 para bater o Flamengo nos pênaltis, dentro do Maracanã, pelas quartas de final da Copa do Brasil. Era 17 de julho, um mês após Jesus assumir o time.
Seis meses depois, viver a chance de superar o melhor time de Zico e se igualar ao melhor de Pelé não é pouca coisa. Está a apenas dois jogos de distância do Flamengo de Bruno Henrique, Gabigol e Arrascaeta. Seu último confronto no ano, caso o roteiro não seja reescrito pelo destino sempre improvisador, será contra o Liverpool de Salah, Mané e Firmino. Se fizerem novamente a final, quem vencer passará à história do futebol mundial. E seguirá vida afora na retina e na alma de moleques. Os que vivem e os que ressuscitaram em corpos envelhecidos.

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