O épico fim de semana do flamengo, que conquistou a libertadores no sábado e o brasileirão no domingo, acabou se tornando um momento de “efervescência coletiva” privilegiado para observar a sociedade. Como em todo momento deste tipo, tendências de comportamento discretas e disfarçáveis ao primeiro olhar, tornam-se robustas e evidentes para todos. Uma destas tendências é o complexo de vira-lata em relação ao país como um todo, alimentado internamente pelo cultivo de ojeriza específica e pouco disfarçada a tudo que é popular, especificamente aos modos de sentir e raciocinar do povo.
A torcida do flamengo, pelo menos neste fim de semana, assumiu nas ruas seu rosto popular e profundamente brasileiro, suspendendo o estado de tristeza do país em momento de grandeza e alegria contagiantes, mas gerando também inveja perceptível por sua capacidade singular e incomparável de mexer com as entranhas mais profundas do humor nacional. A ojeriza à torcida do flamengo revela o estado mais puro e extremo de nosso complexo de vira-lata. Embora não reflita o espírito do autor, um homem que gosta e acredita no Brasil como poucos, a própria ideia de “síndrome do flamengo”, conceito criado pelo cientista político Fábio Wanderley Reis para designar suposto deficit de racionalidade no comportamento eleitoral das classes populares, reflete este complexo de vira-lata, fundado no desgosto com o povo. O conceito destaca a simplicidade das percepções e imagens que os eleitores usariam para basear seus entendimentos e condutas sobre a política institucional. A falta de crenças ideológicas estruturadas atinentes ao jogo político seria um traço típico do comportamento político-eleitoral popular, favorecendo sempre padrões de subdesenvolvimento político destes atores sociais, submetidos quase que exclusivamente a vinculações personalistas. Mesmo não elencando a incapacidade de separar política e futebol como um dos indicadores deste deficit de racionalidade, este atributo faz todo sentido a partir do conceito e está presente em discursos sobre os significados políticos da torcida do flamengo
A irracionalidade política do povo, elemento central do complexo de vira-lata, teria na torcida do flamengo sua metáfora mais adequada. Fábio Wanderley Reis é um dos mais brilhantes cientistas sociais deste país, mas a ideia de “síndrome do flamengo” foi uma canelada e não passa de uma percepção simplificada, questionada pelos estudos sobre comportamento eleitoral, que sustentam a
significância estatística de programas políticos neste comportamento. O próprio autor, como podemos verificar em
palestra na Uenf ocorrida em 2016, já não utiliza o conceito enquanto categoria norteadora de seu pensamento. No entanto, a “síndrome do flamengo” parece existir e persistir por contra própria no senso comum vira-lata, como categoria de classificação social, e foi isso que se revelou na pequena mas notável ojeriza à alegria e à grandeza rubro-negras deste fim de semana. Exemplo maior são as inúmeras análises que afirmam um sequestro da alegria flamenguista pela agenda da extrema-direita, em um reducionismo como eu há muito não via em relação ao futebol, pelo menos não de gente que se pretende esclarecida e progressista. Não esperava, depois de uma derrota na eleição presidencial em função do distanciamento cultural em relação ao povo, que alguém de esquerda tivesse a estupidez de falar do futebol como “alienação”.
A simples constatação de que a torcida do flamengo não tem histórico de votar como torcida para eleger dirigente ou jogador do clube já bastaria para desancar este tipo de tese. Em 2018, Bandeira de Mello não ganhou eleição para deputado federal. É preciso afirmar a complexidade dos modos de percepção do povo, que consegue fazer a necessária diferenciação entre política e futebol, entre sociedade e arte, entre sociedade e esporte, entre religião e política, realizando a separação necessária entre as esferas, sem a qual a fruição da vida fica impossível, estejamos em ambiente de boa ou má política. O
efeito político positivo que o governador do estado quis produzir está condenado à nulidade diante da potência de uma “efervescência coletiva” que até pode ter efeitos políticos indeterminados, pois tudo que mexe com a profundidade da alma popular pode balançar os vetores da ação coletiva, mas é uma efervescência essencialmente produzida pelos valores do esporte e pela paixão em vivenciar estes valores, como o valor da grandeza. Imaginar um torcedor do flamengo vinculado à extrema-direita ou há qualquer posição política só pelo fato de vivenciar a “efervescência coletiva” do épico fim de semana é ignorar estupidamente a realidade, é não observar o que realmente motivou e vinculou a multidão: o êxtase com a grandeza implacável do flamengo. Isto é obvio para o povo, mas infelizmente precisa ser lembrado para quem subestima sua inteligência e a legitimidade de suas paixões.
A maior dificuldade em separar política e futebol não parece estar com o povo. O problema não é a “síndrome do flamengo”. Ao contrário, está com quem deseja ensinar o que não sabe ao povo, inclusive com os pernósticos da esquerda que ficam discutindo se Gabigol teve ou não a intenção de esculachar o governador do estado ao ignorá-lo em cena vergonhosa. Os patrulhadores de esquerda, no fundo, parecem também acreditar que o povo não sabe separar política de futebol, pois insistem em cobrar posicionamento político dos jogadores, como se isto tivesse efeito relevante no comportamento do público. A torcida do flamengo não é o problema. E muito menos suas paixões e seu suposto deficit de racionalidade. A esquerda vem perdendo sua capacidade de encantar e agregar torcida. Seu maior problema é o rebaixamento das expectativas, a falta de imaginação institucional e de ousadia programática, e nisto, se fosse para correlacionar política e futebol, deveria aprender com o flamengo em seu projeto de elevação das expectativas, reconstrução institucional e ousadia programática. O problema é o complexo de vira-lata, vencido dentro e fora de campo neste fim de semana épico para o flamengo e para o país, mas que ainda está presente em frações importantes da esquerda e na quase totalidade da direita.