O voto fútil
Edmundo Siqueira 23/09/2022 15:16 - Atualizado em 23/09/2022 15:17
Uma das características em comum dos governantes populistas-autoritários é que eles usam o primeiro e o segundo mandato para agendas distintas. O primeiro serve para normalizar absurdos. Ataca-se as instituições, nega-se a ciência, a educação e a cultura estabelecidas, e age na tensão permanente.

O segundo serve para algo pior: o presidente controla definitivamente o congresso e o judiciário, os partidos de oposição são colocados no ostracismo e a imprensa é acossada. A democracia é corroída por dentro, com agressividade.

Foi assim na Hungria, Venezuela, Nicarágua e por pouco foi assim nos EUA — situação impedida pela derrota de Donald Trump. O risco de ser assim em uma eventual vitória de Bolsonaro é alto.

Esse risco justifica uma narrativa muito presente nessas últimas semanas de campanha: a necessidade do voto útil. Quando um candidato lidera as pesquisas com números estáveis, e existe a possibilidade real de que ele ganhe em primeiro turno, o eleitor pode ser levado a fazer uma escolha “útil”. Vota-se nele por uma questão estratégica.

A questão é que um número relevante de eleitores se identifica com outros candidatos que não estão na frente, e não veem como “inútil” votar na proposta que apresentam. Pelo contrário: querem exercer o direito de escolher sem medo, sem pressão, sem constrangimento.

Mas a democracia construída no Brasil até aqui impôs ao eleitor a necessidade de considerar o voto necessário. E para além das torcidas já estabelecidas, o eleitor que de fato decide o jogo deve colocar na balança os motivos de votar ou não no candidato com mais chance.

Os dois lados da utilidade

As eleições representam uma oportunidade para que a sociedade posso discutir o país. É quando os candidatos se apresentam, as propostas são discutidas e as visões de mundo são levadas em conta. Quando se abre mão dessa discussão para votar em “quem tem mais chance”, ou por medo de algo pior, a democracia já se perdeu. A escolha passa a ser algo imposto e, mesmo que temporariamente, reconhecemos que não temos a liberdade de escolher quem achamos que seria o melhor candidato.

Além disso, Bolsonaro apresenta uma condição impeditiva para ganhar em um segundo turno: uma rejeição maior de 50%. Ter essa certeza — ou pelo menos esse cenário posto — pode levar o eleitor de Ciro Gomes ou Simone Tebet a querer que as propostas de seus candidatos sejam colocadas na mesa de quem disputa a segunda fase do pleito.

Um candidato que vença em primeiro turno pode optar por não abrir seu governo às outras correntes, por tentar uma governança “puro sangue” e dialogar pouco com os setores que ele considere menos importante. De novo, perderá a democracia.

Por outro lado, a situação que o país se encontra é dramática. As instituições estão no limite, o judiciário é chamado a intervir a todo momento, o congresso opera em orçamento secreto e não cumpre as suas funções constitucionais na plenitude, episódios de violência política estão cada vez mais frequentes e mais de 30 milhões de brasileiros estão na miséria. Isso sem contar a condução do governo na pandemia, que postergou a distribuição de imunizantes possivelmente levando milhares à morte desnecessariamente.

Caso Bolsonaro perca as eleições no primeiro turno, se tornará exponencialmente mais difícil para ele contestar o resultado. E ele dá todos sinais que não aceitará o que definir as urnas, as vem questionando sempre que pode. Deputados estaduais e federais, governadores e senadores também serão eleitos no Brasil inteiro. Para contestar o resultado será preciso que Bolsonaro invalide todos os demais cargos.

Se não bastasse, o segundo turno é praticamente novas eleições. O jogo é mais pesado, mentiras podem ser fabricadas, imprevistos podem acontecer e a violência pode se acentuar. É sim, mais seguro, resolver a eleição em turno único. O momento histórico atravessado não permite que se conteste essa afirmação.

Olhar de baixo para cima
Reprodução/Rede Brasil


Certamente fazendo ponderações semelhantes, a ex-senadora Marina Silva optou, no último dia 12, por apoiar Lula. Marina porém, condicionou o apoio à aderência programática do petista nas pautas que ela acha importante, como meio ambiente e educação. Nas palavras dela, “política se faz olhando de baixo para cima, e acima de nós está a democracia”.

Marina, que foi covardemente atacada pelo PT em 2014, ainda cita a filósofa política alemã de origem judaica, Hannah Arendt, para declarar seu apoio. “Contra o imponderável, resta o poder da promessa; contra o irreversível, o poder do perdão”.

A nove dias da eleição, todos os caminhos possíveis para o eleitor que deseja a derrota de Bolsonaro, levam ao ex-presidente Lula. O voto útil é cada vez mais ponderado por esse eleitor.

Não se espera de Ciro Gomes a mesma postura de Marina Silva. Aderindo ao ressentimento político como arma principal, deixou de lado o que era considerada a melhor e única proposta consistente para o Brasil e resolveu se isolar, e colocou um alvo nas costas de Lula. As palavras de Ciro passaram a ser usadas em círculos bolsonaristas e parte do campo progressista conseguiu colar nele a imagem de “linha auxiliar do fascismo”.

Não há no horizonte a perspectiva que Simone Tebet vá mudar de estratégia, ou que saia de seu percentual de votos atualmente conquistado, e sua campanha é vista como responsável. Apesar de aparentemente estacionada, dobrou seus números nas pesquisas.

Pesquisas eleitorais são retratos. Registros do momento. São tendências apuradas através de procedimentos científicos para saber como o eleitor está pensando em um determinado espaço-tempo. O que todas elas demonstraram — pelo menos as consideradas sérias — é que a maioria do eleitorado não quer mais Bolsonaro no poder e vê em Lula a saída mais segura.

Mas, se as premissas mudam, o raciocínio muda. O voto útil depende de que as premissas continuem as mesmas. O voto deve ser sempre um ato que envolve razão, reflexão e considere o momento atravessado. O que não pode ser levado em consideração é um decidir por um voto fútil.

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