Que Deus tenha misericórdia dessa nação
Edmundo Siqueira 25/08/2022 21:56 - Atualizado em 25/08/2022 22:00
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Existem algumas situações que podemos prever o pior, como o início de uma briga, dirigir com pneus carecas demais ou aventuras etílicas que vão além da conta. Eduardo estava na Câmara dos Deputados em um domingo, 17 de abril de 2016, e pôde prever que o pior também aconteceria a partir daquele dia. Seria uma votação importante e seu voto, aguardado; Eduardo era um parlamentar influente.
Eduardo Cunha, como era conhecido, não se furtou a fazer um discurso ao proferir seu voto, a exemplo de seus pares. Naquele domingo, os deputados julgariam se era ou não procedente um processo de impeachment contra a presidente da República. Pela primeira vez uma mulher tinha assumido a cadeira do poder executivo federal.
Antes do discurso de Eduardo, um deputado, até então quase desconhecido, procurou escandalizar quem o assistia naquele dia. Ao proferir seu voto, homenageava um torturado: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Não poderia haver um ato mais abominável, salvo se a pessoa que estava no banco dos réus tivesse sido torturada pelo homenageado. E era. Jair chamou Ustra de “pavor de Dilma Rousseff". Este era o nome da presidente. E disse “sim pelo Exército de Caxias e pelas nossas Forças Armadas”.
Jair ainda disse que “Deus estava acima de todos” em seu discurso inflamado, onde exaltava o carnífice e violentava ainda mais a vítima. Jair fez lembrar aos expectadores mais cientes — e ainda mais estupefatos com aquilo — da história mundial, que os soldados nazistas traziam nas fivelas de seus cintos a frase “Gott mit uns”, ou “Deus está conosco”. Inscrição que podia ser lida por um judeu ao ser arrastado para uma câmara de gás.

Talvez houvesse parlamentares naquela noite de domingo que tenham tido essa consciência. Talvez não, até pelo tumulto — a Casa de Leis parecia um picadeiro em dia de espetáculo. Mas o fato é que não houve contestação séria da fala do Jair. Ele não saiu de lá preso, não foi pedido para que retirasse suas palavras, e não foram abertos procedimentos no comitê de ética.
Mesmo por Eduardo, que exercia sua influência também pelo cargo que ocupava. Era presidente da Casa que conduzia aquele processo. Ele e Jair tinham uma relação boa. “Seu nome, Cunha, entrará para a história com a forma como conduziu os trabalhos”, elogiava Jair.
Embora muitos estivessem no bolso de Eduardo, nenhum deputado o apoiava publicamente naquela noite. Com exceção de Jair. Alguns o criticavam duramente: “Senhor Eduardo Cunha, o senhor é um gangster, o que dá sustentação a sua cadeira cheira a enxofre”.
Mas finalmente tinha chegado o momento do voto de Eduardo; e do discurso. Mas ele resolveu ser sucinto, sem dizer que votava em nome de ninguém, ou homenageando algum torturador. Votou sim, dizendo apenas uma frase:
— Que Deus tenha misericórdia dessa nação.
Eduardo já era um político experiente naquela ocasião. Participava republicanamente e também de forma ilícita da política. Foi preso meses depois daquele domingo. Por 362 votos a 137, o impeachment foi aprovado. Eduardo foi um dos principais articuladores. Dentro de suas ambições e intenções, ele sabia o que estava fazendo, e sabia da frase que proferiu ao votar. Sabia.
Aliás, sabia até do futuro. Que Deus tenha misericórdia dessa nação.

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