Artigo - Uma escritora pioneira no Norte Fluminense
*Adélia Noronha - Atualizado em 02/05/2022 18:39
Capa do livro 'Mercedes', escrito por Amelia Gomes de Azevedo
Capa do livro 'Mercedes', escrito por Amelia Gomes de Azevedo / Foto: Divulgação
Até o momento, a pesquisa não encontrou escritora mais antiga que Amelia Gomes de Azevedo nas regiões Norte-Noroeste Fluminense. Ela era filha de fazendeiro, tornando-se também fazendeira quando adulta e casada. Amelia estudou no Rio de Janeiro e redigiu artigos em francês que foram premiados no exterior. Esses textos podem ser encontrados na coletânea intitulada “Rumorejos do Monte Himalaya”, editada em 1894 com prefácio de Affonso Celso de Figueiredo Júnior. O livro foi reeditado pela Editora Essentia, do Instituto Federal Fluminense, como 5º volume da série “Memórias Fluminenses”, em 2019.
Em 1896, ela publicou o romance “Mercedes”, que Horácio de Souza diz ser ambientado em Barra do Furado. O autor de “Ciclo áureo” não deve ter lido o livro. É certo que ela tenta ambientar parte do romance em Barra do Furado, mas a impressão transmitida é a de que as informações sobre a localidade foram colhidas de segunda mão, assim como as de São Gonçalo (hoje Goitacazes), segundo lugar em que a trama transcorre. O terceiro lugar é Campos, que a autora devia conhecer bem. Seu forte não é a paisagem. Pelo contrário, ela faz o rio Paraíba do Sul passar por localidades distantes do seu curso. São duas as linhas que norteiam o romance: as relações familiares, que culminam com o casamento de Mercedes, e a discussão sobre o fim da escravidão. Amélia era uma abolicionista moderada, bem diferente de Carlos de Lacerda.
Sobre Barra do Furado, ela é reticente: “Davam-se estes fatos no lugar denominado Furado, município de Campos. Naquele tempo ainda era difícil o meio de locomoção para lá; porque, a não serem cavalos, só tinham o recurso de pesados carros, puxados lentamente por bois, em caminhos quase intransitáveis nas épocas das grandes chuvas. Aqueles vargedos imensos tornavam-se alagados, e, quando começava o sol, encontravam-se aqui e ali vastas lagoas de água esverdeada, por cima das quais esvoaçavam bandos de borboletas brancas, que fugiam ao aproximar-se algum viandante. É justamente em ocasiões semelhantes que se dão casos de epidemias, que vão ceifando a esmo os habitantes de localidades baixas e úmidas, principalmente aquelas onde a pobreza é maior. Campos era a sede de um município desde 1835, portanto com estatuto de cidade”.
Amelia menciona um aglomerado humano junto à Barra do Furado, hoje vila de Quissamã, na margem direita do canal da Flecha, aberto entre 1942 e 1949 pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Ele substituiu a vala do Furado. E a descrição continua: “Em um povoado pequeno, porém de movimento relativamente grande, preparavam festejos para o dia de Reis. Era a véspera. À margem da principal estrada do lugar, deparava-se com uma casa de construção antiga, mas limpa e enfeitada para a ocasião. Na fachada, onde algumas aberturas indiscretas deixavam ver a madeira, lia-se em letras grandes, de cor vistosa: – Ivo & C. Um sortimento de tudo o que o negociante do interior pode vender com bom lucro acumulava-se nas prateleiras, em baixo do balcão, ao pé das portas, escancaradas até alta noite. Ao lado de alguma fazenda com a denominação de sede, porém de duvidosa legitimidade, estava a garrafa de saborosa cerveja, e a não menos querida com parati. As perfumarias confundiam suas exalações agradáveis com as emanações rançosas do toucinho vindo do centro de Minas”.
Os ambientes criados por Amelia são descritos de maneira muito vaga. Em qualquer ponto da planície, principalmente nas proximidades da zona costeira, o acesso era difícil. Não havia estradas pavimentadas. No máximo, caminhos de terra por onde apenas cavalos e carros tracionados por bois podiam circular, principalmente em tempos de chuva, quando até canoas eram usadas. A descrição de Amelia vale para o Açu, Quixaba, praia do Farol, Santo Amaro e Furado. Normalmente, as casas eram construídas com paredes de barro sobre trançado de bambu e os telhados eram coberturas de taboa seca. Daí esses povoados serem chamados de cidade de palha.
Como elas se erguiam em locais de difícil acesso, sobretudo em tempos de chuva, era comum existirem armazéns que vendiam uma variedade muito grande de artigos. Ainda conheci alguns deles, vendendo desde alfinete a selas para cavalos, de sandálias a roupas, de balas a gêneros alimentícios não perecíveis. A especialização do comércio decretou o fim desses armazéns.
A geografia de Amelia é formada pelo triângulo Furado-São Gonçalo-Campos, mas de forma confusa. São Gonçalo era e é a sede de um distrito de Campos, erguido distante do rio Paraíba do Sul. Mas, no romance, parece que ele está ao lado da localidade. No entanto, existe uma observação condizente com a realidade ambiental. Um personagem, ao cruzar o Paraíba do Sul para a margem esquerda, encontra um rapaz que cortava lenha para fornecê-la à ferrovia. De fato, os terrenos de tabuleiros da margem esquerda eram revestidos de extensas florestas que abasteceram não apenas as usinas, mas as ferrovias que cruzavam Campos. Normalmente, os ficcionistas não atentam para o espaço que têm sob os pés. Poucos são como Umberto Eco, que estudava os terrenos que figuram em seus romances.
Amelia estudou no Rio de Janeiro. No século XIX, a viagem da zona serrana da região, onde ficava a fazenda Monte Himalaia, residência de sua família, era feita até Campos a cavalo. Depois, em vapores de médio calado, descia-se o Paraíba do Sul até São João da Barra, onde, já no mar, embarcava-se em navio e navegava-se para o Rio de Janeiro. Na volta, o caminho era o mesmo. No romance, Amelia anuncia uma viagem a São João da Barra e acaba em São Gonçalo. Pelo menos Campos e São João da Barra ela conhecia. Mas sua descrição é confusa.
Se hoje é possível chegar a Barra do Furado de automóvel e de ônibus, tanto partindo de Campos quanto de Quissamã, no século XIX, como escreve Amelia, a localidade só era acessível a pé, a cavalo ou a carro de boi, meios de transporte usados por Wied-Neuwied e Saint-Hilaire. O carro de boi generalizou-se como meio de transporte para localidades costeiras do Norte Fluminense. Maria Rita da Silva Lubatti (“O folclore na vivência atual de Açu, Marreca e Quixaba (Campos, RJ)”. São Paulo: Editorial Livramento, 1979) e Jorge Luiz Gomes Monteiro (“Acesso à terra urbana de veraneio: análise da produção do espaço na praia do Açu-RJ”. Dissertação (mestrado). Brasília: Universidade de Brasília, 1996) relatam que a praia do Açu, uma dessas localidades, era procurada por moradores da zona rural para veraneio. Eles transportavam todo o necessário em carros de boi.
A autora de “Mercedes” partilha a concepção de sua época, segundo a qual o meio natural estimula ou desestimula o “progresso”. Ela escreve que as epidemias resultam de um ambiente adverso e que grassam com a vida ociosa do pobre:“É justamente em ocasiões semelhantes que se dão casos de epidemias, que vão ceifando a esmo os habitantes de localidades baixas e úmidas, principalmente aquelas onde a pobreza é maior”.
Ela se pergunta se “...a nossa invejada riqueza não será um dos fatores dessa indolência? Os pobres [...] Entregam-se à pesca; e o rio abundante não nega o sustento necessário a famílias inteiras, as quais, à noite, esquadram suas tarrafas, e durante o dia deixam-se embalar em doce ócio, saboreando o encanto de prolongado sono.” Em meio à fartura, grassa a pobreza, derivada do ócio, e a debilidade orgânica, que favorece a doença. O alemão Robert Avé-Lalement via com maus olhos a ociosidade das populações costeiras da Bahia, vivendo em meio a um mundo farto de peixes, caranguejos e cocos que não estimulava a construção de uma civilização (“Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859”, 2 vols. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1961). Alberto Ribeiro Lamego partilhará essa concepção ainda na década de 1940 (“O homem e a restinga”. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1946)
Enfatiza Amelia: “O organismo enfraquecido, não encontrando em si forças para a resistência, deixa-se prostrar pela enfermidade, e o resultado é a morte, consequência certa da indolência de muitos dos nossos. A palidez, a falta de graça em seus movimentos, tudo revela o desanimo, o torpor de pessoas que se poderiam prestar com utilidade, se a ambição as estimulasse, ou se a necessidade as impelisse a lutarem pela vida com mais energia [...] Parece que Deus tem comiseração delas, e lhes oferece meios para de algum modo lhes evitar tormentos [...] Se um dia têm fome, no outro já encontram alimento; se hoje sentem o frio a açoitar-lhes os membros, ali está a fogueira, ao pé da qual se aquecem, adormecendo com benéfico calor”.
Antes da ação sistemática do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), que operou entre 1940 e 1990, a baixada se transformava num pantanal na estação das cheias. Mesmo abrindo-se a barra da vala do Furado, as lagoas transbordavam, encobriam os mínimos divisores de água e se ligavam. Sob efeito do sol, as plantas aquáticas se alastravam e tomavam a superfície das lagoas, como ainda hoje acontece. Até de maneira mais acentuada pela presença de esgoto orgânico.
Então, aparece o motivo que justificou a massiva drenagem da região: as epidemias. Acreditava-se, até as primeiras décadas do século XX, que as doenças eram provocadas pelos vapores mefíticos oriundos da decomposição de matéria orgânica. Lagoa, para o senso comum e mesmo para as autoridades médicas, era sinônimo de foco de endemias. Elas deviam ser drenadas. Na verdade, eram mosquitos os vetores de doenças. O combate às endemias e a proteção dos pobres foi o grande motivo alegado para a drenagem das lagoas, chamado então de saneamento. As grandes beneficiárias, no caso da Baixada Campista, foram a agroindústria sucroalcooleira e a pecuária.
Essa parte do romance se passa antes de 1888, com algumas menções pontuais ao uso de canoa para atravessar o rio Paraíba do Sul e grandes áreas alagadas por chuvas copiosas. Encantadoras, mas perigosas. Depois, a trama se volta mais para a questão do fim da escravidão, da crítica à República e dos dramas pessoais.
Sobre a referência ao livro, ele foi publicado no Rio de Janeiro pela “oficina de obras do Jornal do Brasil” em 1896. Essas são as únicas informações constantes na obra. Amelia é a única ficcionista regional do século XIX. A única representante de um romantismo tardio. “Mercedes” merece uma segunda edição.

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