Arthur Soffiati: Reflexões sobre natureza e cultura (I)
Arthur Soffiati - Atualizado em 10/12/2020 17:52
Desde o Renascimento, a filosofia ocidental se esforça em separar a humanidade da natureza, da qual ela emergiu com a constituição do grupo zoológico dos primatas e, dentro dele, o dos hominídeos. No fim do século XV, o pensador Picco della Mirandola (1463-1494) parecia identificar os pés humanos com a natureza e a cabeça com o espírito (parte do corpo que seria futuramente indicativo de razão, de cultura): “Diria que os pés são a parte mais desprezível com a qual a alma se apoia na materialidade como em solo próprio, ou seja, a potência nutritiva e alimentar, essa fome de libido e essa mestra da voluntária indolência.” (“A dignidade do homem”. São Paulo: GRD, 1988). Os pés representavam os instintos, enquanto que a cabeça era a sede da alma. Ele é mais explicito nesta outra passagem: “... o Supremo Arquiteto e Pai, Deus, tinha construído, com as leis de sua arcana sabedoria, essa moradia terrestre da divindade, esse augustíssimo templo que, ora, contemplamos; havia decorado a região supraceleste com os espíritos, fizera habitar nos orbes etéreos as almas imortais; povoara as zonas excretórias e feculentas do mundo inferior com toda espécie de animais” (Idem).
Ainda no mesmo século, Marcílio Ficino (1433-1499), um dos expoentes do Humanismo, declara com orgulho ufanista: “Não apenas o homem se serve dos elementos, mas embeleza-os, o que nenhum animal faz. Que admirável a cultura da terra sobre toda a superfície do globo, que espantosa a construção de edifícios e de cidades. Que engenhosa a irrigação das águas... Há um ponto que é preciso notar, é que não é o primeiro que chega que pode descobrir porque ou como uma obra construída com arte por um hábil artífice foi realizada, mas apenas aquele que possui um talento igual.” (“Teologia platônica”).
Com René Descartes (1596-1650), no século XVII, essa separação se consolidou. De um lado, o homem, a mente, a razão matemática e monológica. Do outro, o animal, o corpo, os instintos, os comportamentos inatos. Com raras exceções discordantes, essa separação atravessou os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Neste último, contudo, as pesquisas de Charles Darwin (1809-1882) sobre a seleção natural conduziram à conclusão de que a humanidade tem origem animal e de que o animal revela alguns comportamentos humanos. Mas o impacto da contribuição de Darwin só seria sentido devidamente no século XX. No tempo em que viveu, no século XIX, Johann Blumenbach (1752-1840) ainda exclamava triunfante: “O homem nasceu destinado pela natureza a ser o animal mais completamente domesticado; os outros animais domésticos foram primitivamente conduzidos a esse estádio de perfeição pelo homem. Ele é o único a conduzir-se a si próprio para essa perfeição.”
O argumento principal dos defensores da separação cartesiana entre animais e humanos é que estes carecem de algo flexível fora dos instintos, que é a aprendizagem, e algo além do comportamento determinado que se chama cultura. A etologia, ciência que estuda o comportamento animal, mostra que sociedade é um fenômeno comum na natureza, que os sistemas de comunicação animal são mais sofisticados do que se imagina, que os animais aprendem não apenas no âmbito de suas espécies como também com experiências promovidas por humanos, que os animais criam comportamentos como resposta aos desafios impostos pela natureza ou casualmente, e que os animais podem criar cultura material.
Edgar Morin formulou uma excelente analogia sobre a ligação entre animal e humano, entre natureza e cultura num artigo dos anos de 1970, intitulado “O complexo de Adão e o Adão complexo”. Explica ele que o antropocentrismo dos últimos 500 anos levou o pensamento ocidental a encerrar o ser humano (Adão) num pedaço de terra que se julgava ilha para afastá-lo do continente da animalidade. A ilha, contudo, era pura ilusão. Ela continuava ligada ao continente na forma de península. Foram as brumas do dualismo que cobriram o istmo e deram a impressão de ilha. Dissipadas as brumas, a península passou novamente a ser vista, tanto quanto a ligação entre animal e ser humano. (“A unidade do homem: invariantes biológicas e universais culturais”).
Assim, o novo paradigma naturalista organicista, agora com base nas ciências, não apenas contesta o paradigma naturalista mecanicista, que vigorou entre os séculos XVII e XIX, como também descobre o istmo que liga os animais ao ser humano. A sociedade não é exclusividade da humanidade. Ela é um fenômeno amplamente encontrado em outros animais. Daí a proposta de Edgar Morin de se pensar uma sociologia geral, da qual a sociologia humana seria parte. Daí a etologia mostrar que o fenômeno da cultura não é exclusivo das sociedades humanas, mas que, pelo menos, uma protocultura pode ser encontrada em certas espécies animais.
Edward O. Wilson, em “O sentido da existência humana” e em outros livros, denomina as sociedades em que três gerações se reconhecem como eussociedades. As sociedades humanas se incluem entre elas.

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