Arthur Soffiati: Casa Velha
Arthur Soffiati - Atualizado em 01/12/2020 17:23
Livros de Machado de Assis
Livros de Machado de Assis / Divulgação
Li e reli toda a obra de Machado de Assis nos últimos 50 anos da minha vida, mas confesso nunca ter lido “Casa Velha”, romance publicado em 25 episódios na revista carioca “Estação” entre 1885-86. Tratava-se de um periódico de moda voltado a mulheres. A maioria dos seus leitores devia ser constituído de pessoas fúteis, desinteressadas em ler romances, mas um que outro leitor teria sua atenção voltada para o grande escritor. Nessa revista, ele publicou também o romance “Quincas Borba” e a novela “O alienista”.
“Casa Velha” tem fortes traços da primeira fase de Machado de Assis, assemelhando-se a “Ressurreição”, “A mão e a luva”, ”Helena” e “Iaiá Garcia”, romances que ainda se movimentam dentro do romantismo. A guinada foi dada em 1881, com “Memórias póstumas de Brás Cubas”, em que o escritor revela um realismo distinto daquele praticado por Eça de Queiroz. Um realismo cheio de sutilizas. Por isso, Lúcia Miguel-Pereira acredita que “Casa Velha” foi escrito na fase romântica do escritor e guardado. A necessidade de cumprir compromissos com uma revista da qual foi colaborador por mais de 40 anos teria levado Machado a retirar o romance da gaveta e publicá-lo. Ele não figurava nas obras completas do autor. Foi a própria Lúcia que o redescobriu e o publicou em 1943.
Li o romance na edição de 1991 da Livraria Garnier, com introdução de John Gledson e prefácio de Lúcia Miguel-Pereira. Gledson é inglês, mas um dos maiores estudiosos da obra de Machado de Assis. Ele escreve que “não é aconselhável identificar personagens de ficção com figuras históricas reais.” No entanto, ele vê inúmeras alusões à realidade no romance. Creio que eu vi até algumas mais. Primeiramente, a trama se desenrola em 1839, ano em que nasceu Machado de Assis no Morro do Livramento. Seus pais eram agregados de Dona Maria José de Mendonça Barrozo Pereira, viúva do senador Bento Barroso Pereira.
A história é narrada por um padre de 32 anos bastante tempo depois do ocorrido. Ele é a figura central do romance por sua condição de narrador, mas existe Cláudia, cujo apelido é Lalau, que também ocupa o centro da história. Ela e sua mãe eram agregadas de D. Antônia, também viúva de um ministro de D. Pedro I. De início, há semelhança de Lalau e Machado de Assis quanto a suas trajetórias de vida: ambos pobres e agregados de uma mulher pertencente à camada alta da sociedade em virtude seus casamentos.
No entanto, há mais convergências entre autor e personagem. Machado de Assis poderia diluir-se na sociedade de seu tempo e tornar-se um entre tantos. Mas ele seguiu o caminho de muitos pardos do seu tempo, dedicando-se ao jornalismo e à literatura. Lembremos as figuras de Aleijadinho, José Maurício Nunes Garcia, Mestre Valentim, Domingos Caldas Barbosa e tantos outros mestiços, que não se encaixavam nem entre os livres brancos nem entre os escravos. Assim como José Maurício foi o maior compositor das Américas entre os séculos XVIII e XIX, Machado de Assis foi o maior escritor do Brasil de todos os tempos.
Como em “Helena”, existe um romance entre Félix, filho da viúva e do ministro, e Lalau, órfã de pai e de mãe. D. Antônia não quer o casamento. Conversando particularmente com o jovem padre, ela é taxativa: “Nós não vivemos no mundo da lua, Reverendíssimo. Meu filho é meu filho, e, além desta razão, que é forte, precisa de alguma aliança de família. Isto não é novela de príncipes que acabam casando com roceiras, ou de princesas encantadas.” Conheci algumas mulheres aristocratas que zelavam muito por sua posição de classe.
Dona Antônia inventa, então, uma mentira na qual parece acreditar: Lalau seria filha ilegítima do seu falecido marido e, portanto, meia irmã de Félix. Caberá ao jovem padre desvendar o mistério que envolvia as pessoas da casa velha. Seu interesse primeiro foi pesquisar os arquivos do ministro morto, marido de D. Antônia. Ele havia lido as “Memórias” de Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, sobre o reinado de D. João, e queria escrever agora sobre seu filho Pedro I. O padre Perereca realmente existiu. Machado usa a realidade como gancho. Ao conhecer a impetuosa Lalau, o jovem padre se apaixona por ela e trava uma luta interior entre seus sentimentos e os juramentos feitos ao se ordenar. Mesmo vivendo esse drama interno, ele se empenha no casamento de Félix e Lalau.
Machado de Assis descreve o jovem Felix como um filhinho de papai e mamãe, mais desta que daquele, que já estava morto. É um rapaz inexpressivo, como muitos que o autor encontrou em sua vida e colocou em seus romances. Já Lalau é diferente. Embora sem a formação de Félix, ela é uma jovem impetuosa e justa, disposta a lutar em defesa dos fracos e de seus princípios morais. Coincidentemente, ela nasceu em 1822, ano em que foi proclamada a independência do Brasil. Terá essa coincidência sido proposital? A independência representou o nascimento de um novo Estado nacional, parecendo a muitos ter um futuro resplandecente. Ao contrário das outras colônias europeias na América, o Brasil tornou-se independente, mas não republicano. Continuou tendo no governo um monarca: D Pedro I. E este continuou com um pé em Portugal e acabou abdicando em 1831, em favor de seu filho menor D. Pedro de Alcântara, para lutar contra seu irmão no seu país de origem. Nesse ano, morreu também a mãe querida de Lalau, deixando-a órfã e aos cuidados de D. Antônia.
A Casa Velha foi construída na segunda metade do século XVIII. Em 1839, ano em que se desenrola o romance, ela ainda fica entre o rural e o urbano. Alimentos e animais chegam da roça e entram por um portão especial. Como as casas antigas, ela ainda contava com uma igreja anexa, onde um velho padre rezava missas. John Gledson e Lucia Miguel-Pereira não relacionaram o casarão a um tempo passado. Ao fim da leitura, concluí que o casarão é o maior personagem da história. Ele abriga o passado, o presente e o futuro. Ali vive uma viúva aferrada a valores que começam a se esvair, mas cuja permanência mostra muita resistência. Ali se reproduz a sociedade conservadora do Brasil. Mas, ao mesmo tempo, aparece um padre dividido entre a Igreja e o coração.
Sobretudo, aparece Lalau, uma moça cuja data de nascimento representa a esperança nacional. A data de sua orfandade, 1831, representa dias tumultuados para o Brasil. De fato, o período regencial foi marcado por rebeliões e revoluções. Triunfa a ordem com a antecipação da maioridade de Pedro II. O jovem padre descobre que o marido de D. Antônia teve, de fato, um caso com a mãe de Lalau que resultou num filho, mas este morreu. Lalau havia nascido antes e não era meia irmã de Félix. Eles podem se casar. Mas Lalau não quer mais se ligar a uma pessoa cuja família trouxe amargura à sua mãe. Lalau é o futuro. Ela se casa com um homem pobre, mas trabalhador. Helena, no romance de mesmo nome, morre no final. Lalau sobrevive a tudo. Moça atrevida e independente, podendo ser esposa de um homem aristocrata e rico, ela escolhe ser plebeia.
Essa a minha descoberta em 2020, graças ao recolhimento por causa da pandemia. O último livro publicado pelo próprio Machado de Assis tem curiosamente como título “Relíquias de Casa Velha”, de 1906. Ele é aberto pelo famoso soneto “A Carolina”, em homenagem à sua querida esposa e um dos mais belos da língua portuguesa. Machado morreu em 1908.

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