Arthur Soffiati: Rios e rodovias
Arthur Soffiati 26/11/2020 19:13 - Atualizado em 26/11/2020 19:13
Deve um historiador atentar para rios e lagoas em estado natural, ou seja, ainda não transformados pela mão humana? Ou este é um assunto para geólogos, geógrafos, biólogos e limnólogos? A rigor, o historiador não deve se ocupar das transformações pelas quais as sociedades humanas passam através do tempo? Ouvi de um historiador — mas não aprendi —, quando cursei mestrado e doutorado, que história é um campo de saber que examina as transformações sociais numa perspectiva diacrônica. A sociedade humana e a diacronia combinadas distinguem a história de outros campos do conhecimento humano, sobretudo a diacronia, arrematou o historiador.
Fiquei pensando na cosmologia, que estuda o Universo em perspectiva temporal, embora sem sociedade humana necessariamente. Pensei na geologia histórica, que estuda as transformações sofridas pelo planeta Terra desde a sua constituição. Lembrei da paleontologia, que estuda as transformações de espécies e os grandes eventos de extinção, mesmo sem a presença humana. Quis ponderar junto ao historiador, mas me calei. Eu era ainda um estudante e não devia me atrever a questionar a afirmação de um historiador que era meu professor.
Pensei que meu objeto de estudo ruía naquele momento. Não cabia estudar as relações das sociedades humanas com a natureza não-humana através do tempo. Eu pretendia examinar as relações das sociedades humanas com a natureza no Norte-Noroeste Fluminense antes e depois do século XVI. Mas era perceptível entre meus colegas a preocupação estrita com as questões sociais. Um estava estudando Floriano Peixoto estampado na estatuária. Outro queria estudar o papel de Sergipe no processo de independência do Brasil. Aquele outro pretendia examinar o processo de favelização derivado da abolição da escravidão e do fim da guerra de Canudos.
Todos eles olhavam apenas o ser humano nos planos econômico, social, político e cultural. Eu queria estudar as transformações da natureza provocadas pela mão humana. Em outras palavras, as relações das sociedades humanas com terras, rios, lagoas, flora e fauna. Isso não é assunto de historiador, disseram-me. Mas insisti nele. Além de me interessar pela transformação de terras, rios e lagoas por ação humana, de extinção da biodiversidade regional e da introdução de espécies exóticas, acompanho com muita atenção o desconhecimento da natureza pelos órgãos governamentais na construção de estradas.
Antes mesmo de me decidir pela história, eu já acompanhava com interesse a abertura da rodovia transamazônica. Por mais de uma vez, fui obrigado a descer do ônibus por causa de estradas rompidas ou interrompidas por cheias e enchentes. Uma estrada, seja ferrovia ou rodovia, pode se transformar num dique sem a pretensão de cumprir a função dele. Pode mesmo ser um dique-estrada. No Brasil todo, estou atento para os impactos ambientais das estradas: desmatamento, barramento de águas e atropelamento de animais silvestres, principalmente. Já se constituiu, inclusive, um ramo da ecologia destinado ao estudo dos impactos ambientais de rodovias principalmente. Minha preocupação com o tema é anterior à ecologia das estradas.
Como não me interessei apenas por este assunto e não tenho condições físicas e financeiras para estudar os impactos ambientais de estradas num recorte geográfico amplo, restringi-me à região Norte Fluminense, estendendo-me à região Noroeste Fluminense e até ao que denomino de ecorregião de São Tomé, território entre os rios Itapemirim (ES) e Macaé (RJ). Esta ecorregião é formada por três patamares geológicos já bem identificados em 1785 pelo capitão-cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis: zona alta (serrana), zona intermediária (tabuleiros) e zona baixa (planície fluviomarinha). A primeira é constituída por formações cristalinas pré-cambrianas (mais de 600 milhões de anos); a segunda data do Terciário e é formada por argila e concreções ferruginosas (entre 60 e 5 milhões de anos); e a terceira é a mais nova, formada por sedimentos argilosos e arenosos transportados pelos rios e pelo mar (cerca de 2.500 anos). As três deveriam ser bem estudadas antes da construção de uma rodovia, pois as três apresentam particularidades.
Contudo, a mais problemática para a engenharia de estradas é a planície fluviomarinha. Ela é muito plana, com raros pontos altos, formada por dois sistemas hídricos sujeitos a transbordamentos, enchentes e alagamentos. Esses sistemas se conectam e formavam uma infinidade de lagoas rasas permanentes ou temporárias. O desmatamento das áreas mais altas alterou acentuadamente o regime hídrico, com erosão e assoreamento. As obras de drenagem empreendidas pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) entre 1940 e 1990 não altearam nem nivelaram as depressões, sujeitas, assim, a inundações em tempos de chuva. As ferroviais foram construídas em níveis mais altos, com passagem para a água. Mesmo assim, funcionaram como represas e foram rompidas em alguns pontos.
A engenharia de rodovias não tem essa preocupação. As estradas de terra ou pavimentadas com asfalto acompanham as curvas de nível sem sistemas adequados de circulação de água em tempos de estiagem e de cheia. Duas importantes rodovias federais cortam os três degraus geológicos regionais: a BR 101, que liga o Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte pela costa, e a BR 356, de Belo Horizonte a São João da Barra.

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