Arthur Soffiati: Pingo-de-ouro
* Arthur Soffiati - Atualizado em 19/11/2020 18:52
Não posso encontrar responsáveis conscientes pela extinção em massa de seres vivos na crise que encerrou a era paleozoica, há 250 milhões de anos. Nem sequer sabemos bem que fatores concorreram para essa crise, que quase exterminou a vida na Terra. Não podemos culpar a humanidade porque ela ainda não existia. Da mesma forma, não podemos colocar no banco dos réus o asteroide que colidiu com a Terra há 65 milhões de anos. A colisão provocou catástrofes em série, que extinguiram os grandes dinossauros. Os cientistas dizem que os pequenos dinossauros sobreviveram até os dias atuais. São as aves.
Fenômenos naturais não têm consciência. Mudanças climáticas ocorrem sem saber que existem. Asteroides se chocam com outros astros sem a mínima consciência do estrago que podem fazer. Eles não sabem o que são vida e equilíbrio ecológico. Já não se pode dizer o mesmo do ser humano. Sem a mínima intenção, ele se tornou consciente pouco a pouco. Consciência significa ter noção do que se faz. Significa desenvolver valores morais a respeito de bem e de mal.
Certo que cada cultura desenvolve seus valores éticos. O que é certo e errado para uma cultura, não o é para outra. Era correto, para os esquimós, matar idosos que não mais podiam acompanhar os grupos nômades. O errado era não os matar. Era correto infligir mutilações físicas em mulheres na China. Hoje, não é mais. O ocidente, na sua expansão mundial, levou seus padrões éticos a outros povos e os impôs. Assassinatos e mutilações continuam a ser praticados, mas hoje são considerados crimes.
Poluir rios, mares, ar e terra; desmatar e eliminar animais não mereceram a condição de crime por séculos, segundo a ética ocidental. Afinal, diz a Bíblia que Deus entregou a natureza ao homem para seu deleite. A atitude ética mudou radicalmente tanto por parte das religiões quanto por parte das leis laicas. Mas as práticas, não tanto.
A legislação ambiental brasileira, pelo menos, é muito tímida quanto à proteção de espécies. Talvez animais domesticados recebam mais atenção dela. Na prática, Poder Executivo, Poder Legislativo, Justiça, Ministério Público e população consideram a questão ambiental como secundária, sem compreenderem devidamente a importância da biodiversidade não apenas de forma intrínseca, como também pelo que ela representa para o ser humano em termos de conhecimento e qualidade de vida.
Foi com alegria e tristeza que recebi a notícia da redescoberta do pingo-de-ouro na Área de Proteção Ambiental Estadual de Macaé de Cima. Trata-se de um sapinho dourado batizado com o nome científico “Brachycephalus bufonoides”. Ele foi encontrado e identificado pela primeira vez em 1909, pelo naturalista e viajante alemão Ernst Garbe, que coletou dois exemplares dele, hoje no Museu de Zoologia da USP. Esse sapinho não pula como a maioria dos seus parentes. Ele caminha pata ante pata. Só pula quando foge do perigo.
A redescoberta foi feita em 2015 por pesquisadores do Museu Nacional e do Instituto de Biologia da UFRJ. A informação só foi divulgada por eles em 2020 para afastar a concorrência. Era necessário primeiro publicar um artigo para deixar bem claro quem chegou primeiro e para pontuação no currículo. Por outro lado, as publicações demoram muito a serem divulgadas. Da minha parte, me pergunto como esse sapinho ficou escondido por 106 anos. Sendo sua vida curta, certamente o exemplar encontrado não tem idade secular. Ele é recente, o que significa que, no seu cantinho, machos e fêmeas se acasalaram e procriaram. Os machos cantam para atrair as fêmeas, como os homens faziam com a mulheres em serenatas no passado.
Já vimos que ele caminha pata ante pata, só pulando quando tem medo e foge. Então, exatamente assim, com discrição e contando com sua minúscula dimensão, ele cantava baixinho, como um grilo rouco, para chamar a fêmea, ter um colóquio amoroso com ela e perpetuar a espécie.
E agora? Vivemos um tempo bem diferente daquele em que Ernst Garbe viveu. Naquela época não havia ainda a noção da importância da biodiversidade, embora já vigorasse um conceito restrito de ecologia. Não se sabia ainda que a presença de anfíbios é sinal de saúde ambiental e não de sujeira e poluição. E os anfíbios vêm sofrendo uma drástica redução em exemplares e espécies por conta de doenças provocadas por desequilíbrios ambientais. Não se pode repetir o que disse um advogado e fazendeiro progressista de Campos. Progressista no sentido político e no sentido de ser entusiasta do progresso convencional. Para ele, sapo, rã e perereca são a mesma coisa. Parece existir apenas uma espécie no mundo, e ela pode ser retirada do ambiente para não atrapalhar o desenvolvimento. Afinal, na sua fazenda existem muitos bichinhos como esse.
As medidas de proteção devem agora ser redobradas, não só em termos de espécie como em termos ecológicos gerais. Do contrário, o pingo-de-ouro pode sumir de vez e não só por 106 anos.

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