Crítica de cinema - O artista e o artesão
Edgar Vianna de Andrade 05/03/2018 18:03 - Atualizado em 08/03/2018 17:34
Divulgação
(Trama fantasma) -
Artista é aquela pessoa que, por algum mistério, tem talento. Villa-Lobos era um artista, mas não um artesão. Sua genialidade salvou sua música. Ele compunha de forma genial, mas não trabalhava suas composições. Artesão é o artista que lapida. Nem sempre ele tem talento, mas se destaca pelo trabalho paciente. Mas quando é também artista, as obras ganham mais qualidade. Artistas e artesãos ao mesmo tempo foram Piero della Francesca, Brahms, Graciliano Ramos, Ernst Lubitsch e vários outros que não cabe mencionar para não alongar a lista. Como ator, incluo Daniel Day-Lewis. Ele não se contenta em representar, mas vive os papeis que lhe cabem de forma exaustiva.
Em “Gandhi” (1982), sua presença não é notada, mas quem esquecerá do sensível homossexual em “A minha adorável lavanderia” (1985), do dândi esnobe de “Uma janela para o amor” (1985), do sedutor irresistível em “A insustentável leveza do ser” (1988), da performance em “Meu pé esquerdo” (1985), do homem que se tornou musculoso para representar “O último dos moicanos” (1992), do sofisticado e apaixonado gentil homem de “A época da inocência” (1993), do truculento chefe de quadrilha de “As gangues de Nova Iorque” (2002), do ambicioso garimpeiro de “Sangue negro” (2007) e do Lincoln pragmático (2012)?
Num processo de imersão, Daniel Day-Lewis vive seu papel antes, durante e depois das filmagens. Ele demora para sair dos seus personagens. Quando sai, está exausto. Tanto assim que já abandonou o cinema para trabalhar como sapateiro na Itália. Para ele, foi trocar um artesanato por outro.
Mateusinho
Mateusinho
Agora, ele retorna em “Trama fantasma”, anunciado que se aposentará do cinema. Mais uma vez, o diretor e roteirista Paul Thomas Anderson recorre ao trabalho artístico e artesanal de Lewis para encarnar o papel de um mestre da alta costura. Muito mais que um estilista, Reynolds Woodcock é um costureiro procurado pela nobreza europeia, sobretudo britânica. Ele é um homem de meia idade, solteirão, irritadiço, meticuloso, exigente, perfeccionista e com complexo de Édipo. O papel lhe cabe como uma luva: um ator perfeccionista representando um costureiro perfeccionista.
Reynolds tem um ateliê com várias funcionárias. Vive com a irmã até encontrar, no interior da Inglaterra, uma jovem garçonete. Seu nome é Alma (Vicky Krieps). Nasce um amor entre ambos, mas nada de arroubos. Um amor diferente entre duas pessoas de classes sociais diferentes. Também na vida amorosa, Reynolds é discreto, elegante, irritadiço e distante. Alma entra na vida do sofisticado costureiro por vontade deste, mas perturba o equilíbrio do lar e do trabalho. Por outro lado, Reynolds representa para Alma um desafio. Em meio a figurinos portentosos, Day-Lewis desempenha seu papel buscando a perfeição nos mínimos detalhes. Ele não faz performances como em “Meu pé esquerdo”, mas aprende a costurar para desempenhar o papel, assim como aprendeu a jogar facas em outro filme. Hollywood adora performances. Talvez por isso o filme tenha apenas uma indicação ao Oscar.
Mas isso não conta para mim. O que conta é que Day-Lewis está mais uma vez soberbo na arte de representar. Deve ser temerário trabalhar a seu lado, mas Vcky Krieps, novata no cinema, aceitou o desafio e cresceu. Minha crítica é uma homenagem ao grande ator, esperando que ele se arrependa da aposentadoria, assim como se arrependeu de ser sapateiro, e volte a atuar.

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