Folha Letras - O homem das ilhas
* Arthur Soffiati - Atualizado em 04/06/2025 06:46
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Arthur Soffiati*
Américo Ribeiro da Cunha e Bárbara Antónia Soares se casaram em 1944 na capela de Nosso Senhor da Boa Morte, freguesia de Sendim. Era muito comum os casamentos ocorrerem entre jovens que se conheciam desde criança num lugar em que todos quase formavam uma família. Em 1947, nasceu Tristão Soares da Cunha, único filho do casal. Em Sendim, a língua oficial era o português, mas falava-se também o sendinês, uma das várias línguas não oficiais da península Ibérica.

Desde cedo, Tristão revelou-se uma criança solitária e silenciosa. Brincava com seus carrinhos e bichinhos no quintal. Não tinha facilidade de relacionamento. Quando seus pais o matricularam na escola, ele continuou quieto. Fazia seus deveres de casa sem necessitar das advertências paternas. Saindo da escola, Tristão se refugiava no seu pequeno quintal com seus brinquedos. Baixinho, ele conversava com as plantas e com as aves.

Tristão falava e escrevia bem em português, língua que aprendeu na escola, e também em mirandês na variante sendinesa, que aprendeu com seus pais e parentes. Tristão gostava muito quando o levavam a visitar o rio Douro, na sua infância ainda sem as muitas barragens em que o aprisionaram. Ainda não havia sido criado o Parque Natural do Douro Internacional. O menino gostava muito de admirar o rio sobre as arribas.

Sua infância também foi muito marcada pelos animais silvestres. O abutre-do-Egito, com sua plumagem branca; o melro-azul, que ele via em prédios antigos; o grifo, com toda sua simbologia; o mergulhão-de-crista; o javali, que já se tornava raro na sua infância; o rato-de-cabrera, que ele via com frequência, e a víbora-cornuda, da qual se devia manter distância. Em seu baú de recordações, estavam esses animais.
Desde cedo, o menino solitário e calado mostrou interesse por ilhas. O nome Tristão foi escolhido por seu pai em homenagem ao navegante português Tristão da Cunha, descobridor da ilha batizada com seu nome no Atlântico Sul. É um dos lugares mais afastados de continentes.
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Pai, mãe e filho mudaram-se para Miranda do Douro em 1965 a fim de que Tristão continuasse seus estudos. Jovem, ele se matriculou no curso de Direito sem muito entusiasmo. Pouco depois, morreu-lhe o pai. Sem Américo, Bárbara dedicou-se totalmente ao filho já adulto. Tristão gostava mesmo da história das conquistas portuguesas, que aprendeu nos livros de seu pai desde cedo. Esses livros foram a herança deixada por Américo ao filho.

Ao terminar o curso de Direito, Tristão não se interessou pela advocacia. Ele não era vocacionado para as grandes causas e debates. Em vez de montar banca ou fazer concurso para juiz ou promotor, o jovem conseguiu ser aprovado em concurso público do Concelho de Miranda do Douro para ocupar um cargo burocrático. Como funcionário público, Tristão tinha tempo para aprofundar seus estudos em línguas asturo-leonesas, entre as quais o mirandês se incluía, e disponibilidade para as suas leituras sobre a formação do império colonial português, sobretudo no que concerne ao domínio de ilhas.

Sempre solitário, o jovem burocrata não se casou. Ele chegou mesmo a se interessar por uma moça, que o ignorava. O tempo passou e Tristão foi se acostumando com sua vida de solteiro. Os livros e as viagens pelas freguesias do município de Miranda do Douro ocupavam seu tempo. Por várias vezes, retornou a Sendim não apenas para visitar os poucos parentes que lá ficaram, mas para retornar aos pontos que marcaram sua infância. Gostava de visitar a capela em que seus pais se casaram, de percorrer as ruínas deixadas pelos romanos e, em grande parte, destruídas pela conquista árabe.

Sempre que voltava a Sendim, percorria aqueles locais sagrados para ele: a capela de São Paulo e São Sebastião, a Igreja Matriz, a Fonte do Lugar e a velha estação ferroviária. Nunca deixava de almoçar uma posta mirandesa com um bom vinho.

O magro e alto Tristão se considerava católico, mas não tinha o fervor religioso do seu pai e sobretudo da sua mãe. Ele tinha dúvidas sobre a teologia cristã católica romana, mas não gastava seu tempo com essas preocupações. Podemos dizer que seu catolicismo era mais cultural que religioso. Ele gostava do meio católico por ter sido criado nele e se sentir confortável com a sombra da cruz.

A partir dos 30 anos, ele formulou um plano de vida e começou a juntar dinheiro para realizá-lo. Sendo solteiro e morando com a mãe já bastante idosa, Tristão não tinha grandes despesas. Economizar dinheiro foi-lhe relativamente fácil. Seu plano era visitar ilhas. Já que não podia visitar todas, começou a fazer uma seleção. Na verdade, ilhas em que a presença lusa era marcante de alguma forma.

Aos 28 anos, Tristão conheceu um brasileiro da cidade baiana de Ilhéus. Seu nome era Januário. Ambos regulavam em idade. Januário era biólogo especialista em manguezal, uma estranha vegetação que medra somente em estuários da zona intertropical. Jamais poderia um pé de mangue desenvolver-se na foz do Douro. Januário foi a Miranda financiado por uma bolsa universitária a fim de cursar seu doutorado. Para tanto, escolheu o próprio rio Douro e o efeito de suas barragens sobre o curso fluvial. Os interesses de ambos eram muito diferentes. Na verdade, Tristão foi atraído pela cidade de origem de Januário: Ilhéus. O nome era sugestivo. Constava de mapas desenhados por cartógrafos europeus no século XVI. Mas haveria lá alguma ilha com marca portuguesa?

Logo percebeu que a cidade baiana não iria lhe interessar, mas Januário poderia lhe indicar alguma ilha no Brasil que preenchia os requisitos de Tristão. Quando o brasileiro retornou a sua cidade, ambos passaram a se corresponder por carta. Em princípio, as ilhas selecionadas por Tristão foram Porto Santo, Madeira, as nove dos Açores, São Tomé e Príncipe, Marajó, Ceilão, Tanegashima e Timor.

Mas somente aos 40 anos, Tristão começou a pôr em prática seu tão acalentado sonho. Sua mãe morrera. Foi com grande pesar e tristeza que ele se sentiu solitário no mundo. Mais que nunca, era preciso compensar a perda de uma pessoa tão querida. Nas férias de 1987, o solitário homem partiu para uma temporada de um mês em Porto Santo e Madeira, conquistadas pelos portugueses desde o século XV. Foi com grande prazer que ele leu as “Viagens”, de Luís de Cadamosto. Os nomes de João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo soavam em seus ouvidos como versos de Camões.

Tristão passou um mês baseado em Funchal. Conheceu maravilhado as falésias da ilha e foi a Porto Santo. A alma portuguesa estava presente ali, com sua população católica, suas igrejas, suas casas, seus costumes. A pequena ilha de Porto Santo o deixou fascinado. Era como Portugal em miniatura. E pensar que tudo começou na cidade do Porto, onde nasceu o Infante D. Henrique... Porto, última cidade banhada pelo rio Douro, às margens do qual se ergue também Miranda, no interior. Ele voltou em estado de graça e foi difícil retomar suas atividades cotidianas.

Nas férias do ano seguinte, visitou o arquipélago dos Açores. Lá estava a presença do Cristianismo e de Portugal. Do Cristianismo Católico Apostólico Romano ao estilo português. A vila de Corvo, na ilha do mesmo nome, a mais ocidental do arquipélago, pareceu-lhe o paraíso. Talvez deixar Miranda do Douro e morar naquele lugar mágico. Morrer e ser sepultado lá. Pensou também em Porto Santo.

Mas ainda era cedo. Seu projeto não chegara ao fim. Faltavam São Tomé e Príncipe, Marajó, Ceilão, Tanegashima e Timor. O próximo passo seria dado no Brasil. Numa das cartas a Januário, manifestou o desejo de conhecer o Brasil, mais particularmente a ilha de Marajó. Os nomes dos lugares marajoaras vinham de Portugal: Soure, Salvaterra, Condeixa, Breves, Nazaré, Chaves, muitos lugares com nome de santo e santa. “Visitarei a ilha”. Januário propôs-se acompanhá-lo. Os dois se encontraram em Belém, outra cidade homônima a de Portugal. De cara, Tristão não gostou da capital do Pará. Muita gente com cara de índio, muito peixe, muito tempero, muita sujeira.

Antes de partir para Marajó, Januário o levou a uma missa na Sé. Tristão se comoveu com aquela gente pobre, meio maltrapilha, aleijados, crianças... De si para si, comentou sobre a fé daquelas pessoas. Pobres, feias, sujas, mas acreditando em Deus, em Jesus, no Espírito Santo, em Nossa Senhora de Nazaré. Mais uma vez, lamentou não conseguir dar o passo decisivo que o levaria à fé daquela gente, de seu pai, de sua mãe. E chorou ao ouvir órgão e coro da igreja entoarem, de modo meio canhestro, as “Vésperas da Virgem”, de Monteverdi. Deus meu, como uma obra daquela atravessou o oceano Atlântico e veio parar nesse fim de mundo?!. Perguntou a um coletor de espórtulas o nome da música. Resposta simples e humilde: “É música de igreja”.

Belém-Soure, cinco horas num navio. Tristão nunca vira tanta água. E água quase doce, comentou Januário. Estamos num mundo aquático, o maior do planeta. Belo espetáculo, mas não muito interessante para Tristão. Soure, então, pareceu-lhe melancólica: aquelas mangueiras, aqueles búfalos, aquelas casas sobre estacas, aquela igreja rústica consagrada a São José. Ele conhecia a Soure de Portugal. Era um lugar pequeno, às margens de um rio domesticado. Um rio civilizado. Não esse mundo aquático selvagem. “Não me interessa conhecer as outras cidades da ilha”, comentou com Januário. De si para si, considerou que nunca escolheria aquele lugar cheio de índios para ser sepultado.

De volta a Miranda do Douro, Tristão apressou-se em adquirir uma sepultura na ilha de Porto Santo através de um corretor. O homem taciturno iniciou uma longa reflexão. Várias noites perdeu o sono por conta delas. Na ilha de Marajó, ele encontrou as presenças portuguesa e ocidental nos nomes das cidades e nas igrejas, principalmente. Mas a língua estava muito contaminada por palavras indígenas e africanas. Os sotaques lhe feriam os ouvidos. E pensou o que poderia encontrar nas ex-colônias africanas de Portugal. O que encontraria na Índia, na Malásia, na China, no Japão, na Oceania?

Não apenas as reflexões o perturbaram. Ele começou a emagrecer mais ainda. Sentia algumas dores. Procurou um médico, que lhe pediu exames. Foi ao Porto fazê-los. Cancro no pulmão. Ele era tabagista. Enquanto se tratava, Tristão conversou com um amigo sobre seu desejo de ser sepultado em Porto Santo, mas não lhe revelou o motivo do seu desejo. Escreveu para Januário contando tudo e expondo o mesmo projeto. Seu organismo não resistiu. O amigo a quem externou seu desejo partiu para Moçambique. A carta para Januário se perdeu. Seus colegas celebraram uma missa de corpo presente na Catedral de Miranda do Douro.

Tristão foi sepultado em Sendim, ao lado de seus pais.

*Professor, historiador, escritor e ambientalista

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