Genilson Paes Soares - Re(vi)vendo o Trianon
Genilson Paes Soares 22/06/2021 16:57 - Atualizado em 22/06/2021 16:58
A memória é a capacidade que se tem de preservar e relembrar informações e experiências associadas ao passado. É também fenômeno social: relações entre os indivíduos estabelecidas pelas formas em que interagem entre ou revisitam em lembranças e arquivos.
A memória que construímos em meios impressos revitaliza a forma como os futuros historiadores irão lidar com ela e como influenciar o que as próximas gerações contarão sobre nós. “Somos exatamente o que lembramos e também aquilo que não queremos lembrar”, ensina Iván Izquierdo.
É entre lembranças, memórias e retirando o pó do esquecimento que volto a minha infância, saindo de São Joaquim (antigo 16º Distrito de Campos) para morar no Parque Leopoldina, onde “o meu Trianon” era o acanhado Cine Nossa Senhora de Fátima, que existia naquele bairro de periferia, ao lado da linha do trem.
Depois, o adolescente “mocorongo”¹ conheceu o Goitacá, o Coliseu dos Recreios, o Don Marcelo, o Capitólio... Todos, como o Trianon, não são mais cinema. Ou suas construções igualmente desapareceram, engolidas pelo tempo.
Faço parte de uma de geração de campistas nascida nos meados da década de 1960 que, infelizmente, não teve a oportunidade de assistir a nenhum espetáculo no majestoso palco do antigo Teatro Trianon e nem um simples e divertido filme de desenho animado de Tom e Jerry, na sua concorrida sessão matinê...
Como compromisso histórico, pessoal, profissional e também como pesquisador, — “estando” atualmente presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Campos dos Goytacazes — assumi a tarefa de contribuir um pouco para um resgate às gerações futuras, mesmo com o que não pude assistir nas telas e nos palcos de Campos, mas pesquisando em livros, anotações, arquivos, buscando encontrar nos olhos e lembranças daqueles que viram o que não pude conhecer presencialmente.
Para entender melhor o significado icônico do que representou o Trianon, precisamos de uma rápida passagem aos tempos coloniais, num breve reconhecimento da nossa história, construída em fértil solo massapê.
Ainda na condição de vila, Campos dos Goytacazes sempre foi protagonista de destaque no cenário regional, com participação relevante no contexto nacional. Fruto da importância politica/econômica e do vanguardismo do seu povo, sempre foi pioneira em diversas frentes.
No fim do século XVIII, por exemplo, quando da regulação do serviço postal no país, em 16 de julho de 1798 a rainha D. Maria I criou, na então Villa de São Salvador, a primeira agência postal oficial do interior do Brasil. Em 2 de dezembro de 1869, Campos inaugurou também o seu serviço telegráfico, apenas dezessete anos após esse progresso chegar ao Brasil. E mais. Quando só existiam no país duas linhas telefônicas na cidade do Rio de Janeiro, foram instalados dois aparelhos pelo Dr. Chrysantho e por Julio Barbosa ligando a Estação Telegráfica no Centro da Cidade com a Estrada de Ferro Campos Carangola em Guarus. Registramos também que, em 24 de junho de 1883, a cidade se tornou a primeira da América Latina a usar em sua iluminação pública a energia elétrica.
Nesse ambiente, vicejava também a vida intelectual de Campos, produzindo líderes nacionais, como José do Patrocínio, Luis Carlos de Lacerda, Nilo Peçanha e Saldanha da Gama, tendo como um de seus símbolos a mais antiga livraria do Brasil, ainda em funcionamento, “Ao Livro Verde”.
No primeiro quartel do século XX, continua o período de grande prosperidade para Campos. O município seguia sua trajetória de progresso e liderança no Estado do Rio de Janeiro. A economia regional era impulsionada pela pujança da indústria açucareira.
Aconteciam as grandes obras de saneamento e melhoramentos urbanos, inaugurados em 1916 pelo presidente do Estado, Nilo Peçanha, e o presidente do país, Wenceslau Braz, preparando a cidade para concretizar um antigo sonho: ser a capital do Estado.
É desse período a construção do Trianon, assim como a da nova sede dos Telégrafos e Correios, o prédio da Associação Comercial e Industrial, o antigo Banco do Brasil, o Café High Life, o palácio Nilo Peçanha, a Catedral Diocesana, os palacetes de Vicente de Miranda Nogueira, Germano de Castro, Arthur Pinto e Francisco de Paula Carneiro, todos demolidos, além do Palacete de João Renne (no Calçadão) e do de Atilano Chrisóstomo, hoje Casa de Cultura Villa Maria.
Através dos arcos, portentosa entrada, frisas, camarins e grande palco do Trianon, entrevemos a presença fundamental de Francisco de Paula Carneiro, um campista com visão além do seu tempo, mais um vanguardista da planície goitacá.
De origem simples, mas de grande inteligência e tenacidade empreendedora, Capitão Carneirinho — era assim que os amigos o chamavam — prosperou financeiramente e, de guarda-livros, tornou-se sócio da Usina de Mineiro e da Casa Comercial Carneiro & C., ambas na Baixada Campista, mais precisamente em Saturnino Braga.
Fotógrafo amador, registrando as grandes transformações da paisagem cosmopolita de Campos, no começo do século XX, sua sensibilidade e espírito humanista aproximaram-no das artes e do ramo do entretenimento.
Após criar o Cinema-Palco Orion, o progressista Carneirinho presenteou a sua cidade com o grandioso Teatro Trianon. Um templo dedicado à arte da dramaturgia e ao entretenimento, considerado um dos mais importantes teatros do interior país, orgulho do povo campista, criminosamente demolido no fatídico dia 26 de junho de 1975, para dar lugar a uma agência bancária...
Todavia, hoje, em 2021, felizmente, 100 anos depois da sua construção, o Trianon ressuscita com a sua expressão, simbolismo e história nas páginas de um belíssimo livro, através da dedicação extremada de outra campista ilustre, Juliana Carneiro, que traz em seu sangue o DNA do antepassado Capitão Carneirinho, obra em parceria com o historiador Victor Andrade de Melo.
Conheci Juliana em 2002, quando a recebi em minha agência de publicidade, juntamente com o seu pai, Luciano D’Ângelo, grande amigo dos tempos de Escola Técnica Federal, para tratar, então, da impressão de seu primeiro livro, “O Despertar de Nina Arueira: da disputa de memória à construção do mito”. Logo percebi nesse primeiro contato que brotava do berço dos Carneiro uma inteligente e especial historiadora.
Passados quase dezenove anos, encontro novamente Luciano, que me informa que sua filha estava escrevendo um novo livro histórico e iria precisar da minha colaboração e do parceiro Leonardo de Vasconcellos Silva, amigo de longa data.
E o resultado desse encontro está nas páginas da obra “Nos tempos do Trianon : Campos se diverte!”2, edição da qual me sinto honrado por participar, para que muitos possam vislumbrar e constatar o que, infelizmente, nunca vi... mas sempre sonhei!
*Genilson Paes Soares é Acadêmico da Cadeira 26 (Patrono: Luiz Philippe de Saldanha da Gama)
1 - Definição antropológica do homem campista feita pelo geógrafo Alberto Ribeiro Lamego, que classifica como “mocorongos” os nascidos nas matas próximas da Serra do Mar e “muxuangos” os oriundos das restingas litorâneas.
2 – O livro em formato digital pode ser baixado gratuitamente, e a versão impressa adquirida, no seguinte endereço eletrônico: www.teatrotrianon.com.

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