Arthur Soffiati: Biosfera e tecnosfera
* Arthur Soffiati 23/07/2020 18:51 - Atualizado em 29/07/2020 16:48
Joseph Arnold Toynbee passou toda a sua vida intelectual procurando compreender a história da humanidade. Não se dedicando ao que os historiadores costumam reunir comodamente no rótulo de pré-história, Toynbee dedicou-se apenas ao que se chama de história, mas desmontou a periodização dos livros didáticos, a disciplina ensinada nos colégios e a estruturação dos cursos de graduação e pós-graduação em história, muito embora os historiadores não tenham lhe dado atenção.
Toynbee foi um dos poucos a questionar a superioridade do ocidente e o eurocentrismo, tanto nos simples discursos políticos quanto nos estudos de história. Na monumental obra “Um estudo da história”, em 12 ou 15 volumes, dependendo da perspectiva, ele elegeu as civilizações, e não os Estados políticos, como objeto de estudo da história. Não era novidade. Ele herdava o esforço empreendido por Spengler para demonstrar que as civilizações, inexoravelmente, nascem, crescem e morrem. Seria essa também a trajetória do ocidente, pois as civilizações são como seres vivos.
Toynbee fugiu desse determinismo, mostrando que as civilizações podem morrer ou não. E valeu-se de um conceito bastante promissor: o do desafio-resposta. Recorrendo aos gregos originais, ele descartou a raça como um fator responsável por respostas bem ou malsucedidas. Qualquer raça pode dar respostas positivas ou negativas a desafios de ordem natural ou social. Quando as explicações racistas estavam em voga, Toynbee era uma das poucas vozes a rejeitá-las.
No princípio de suas especulações, ele distinguiu três tipos de civilização, todas elas, geralmente, partindo de sociedades neolíticas: civilizações completas, civilizações abortadas e civilizações paralisadas. As primeiras nasceram, cresceram e morreram, não sendo a morte algo inevitável. As abortadas são aquelas que nasceram e cresceram até certo ponto, não podendo cumprir todo o ciclo por algum obstáculo. As estagnadas são as que responderam positivamente a um desafio natural ou social e não puderam se desenvolver por serem obrigadas a dar constantemente a mesma resposta a desafios muito fortes. Ele identificou como civilizações estagnadas por um forte desafio natural a esquimó, a polinésia e a nômade (das estepes asiáticas). Esparta e a Turquia osmanli seriam exemplos de civilizações estagnadas por desafios sociais. Posteriormente, ele salvou a civilização das estepes, reconhecendo-lhe o estatuto de civilização completa.
Sua concepção recebeu muitas críticas. Toynbee recebeu todas como contribuição ao aperfeiçoamento de sua concepção geral, embora muitas fossem agressivas. Depois de várias revisões e reconsiderações, ele abandonou as civilizações estagnadas, o que considero um descarte precipitado. Manteve as abortadas, a meu ver de forma equivocada. Reviu a lista das civilizações numa versão concisa e final que foi traduzida no Brasil (“Um estudo da história”. Brasília/São Paulo: EdUnB/Martins Fontes, 1986).
Depois de discutir muito comigo mesmo, fiquei com os conceitos de civilização e de desafio-resposta. Toynbee deu alma aos modos de produção identificados por Marx. Numa pilha de esqueletos, temos dificuldade de perceber diferenças. Será preciso um especialista para distinguir a ossada de um homem e de uma mulher, de um negro e de um branco. Com o revestimento dos esqueletos com seres humanos por corpos vivos, distinguiremos com facilidade as diferenças. Por suas obras, perceberemos as diferenças de espírito. O modo de produção reduz corpo e espírito de uma civilização a esqueletos extremamente semelhantes. Cumpre manter o conceito de modo de produção insuflando nele carne, sangue e espírito.
Ao longo de suas reflexões, Toynbee considerou a natureza apenas como desafio a ser respondido ou não pelas sociedades humanas. Durante quase toda sua vida, ele não levou em conta que a natureza podia ser transformada pela ação humana e se tornar um desafio mais forte. No seu tempo, as transformações antrópicas da natureza ainda não tinham sido percebidas nem consideradas como uma nova forma de desafio.
Mas sua última obra, “A humanidade e a mãe Terra”, escrita enquanto ele se recuperava do derrame que o matou, aborda a biosfera sendo transformada pela humanidade, que foi criando uma tecnosfera. Os conceitos não são muito apropriados, mas ele percebeu que a natureza não apenas se transforma naturalmente, mas também por ações humanas, que criam a tecnosfera.
Daí, abre-se um vasto campo para aquilo que vem sendo chamado de história ambiental, cujo objeto mais leve é o estudo das representações mentais das culturas sobre a natureza e cuja dimensão mais pesada é o do estudo das relações materiais das sociedades humanas com a natureza. Cada cultura humana se relaciona de maneira distinta com a natureza. Esse relacionamento pode levar a crises ambientais de origem antrópica, como já foram registradas na ilha de Páscoa, entre os gregos, nas civilizações índica, khmeriana e maia.
De todas as civilizações identificadas e estudadas por Toynbee, a que mais vem se relacionando mal com a natureza é a ocidental, principalmente na sua fase de expansão oceânica. Hoje, o modo de vida do ocidente, pelo menos o modo básico, foi imposto e adotado pelo mundo todo, gerando o que se denomina de globalização e uma crise ambiental antrópica inédita.

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