Ethmar Filho: Relatos Selvagens
Ethmar Filho 23/07/2020 19:39 - Atualizado em 29/07/2020 16:29
Imaginem uma situação onde um rapaz chinês está pedindo a mão de sua noiva em casamento, no meio de um rio, do interior da China, a bordo de um pequeno barco, quase uma canoa, e, na hora do “sim”, o casal é atingido por uma vaca holandesa que cai do céu, matando a noiva na hora e arremessando o noivo para fora do barco. Esta situação é verídica para o cinema argentino, no fantástico e imperdível filme “Um Cuento Chino”, estrelado por Ricardo Darín e dirigido por Sebastián Borensztein, com música de Lúcio Godoy, produtor e compositor nascido na Espanha que já brilhou em trilhas famosas do cinema espanhol, tais como “Todo sobre mi madre”, “Carne trémula” e “La flor de mi secreto”, do mui talentoso e mui controvertido diretor Pedro Almodóvar.
Almodóvar, além de me apresentar a essência do patético e o non sense na forma de cinema depois de Felini, também me emocionou ao ver e ouvir Caetano Veloso e Jaquinho Morelembaum interpretando “Cucurucucú Paloma”, em uma das mais interessantes performances do mano desde o álbum “Fina Estampa”, no filme “Hable com Ella” do diretor espanhol. Caetano, com sua pouca voz e uma lida interessante com o falsete, que quer dizer nota falsa, consegue extrair uma bela interpretação do clássico mexicano, apesar de uma pequena desafinação da nota final.
"Um Cuento Chino", filme ganhador de prêmios importantes de cinema e assistido de forma massiva pelos argentinos, conta a estória de um rapaz chinês chamado Jun, pobre e desiludido, assim como Xi Jimping (com uma pequena diferença que os pais de Jun não foram assassinados pelo partido comunista chinês tal como os pais de Xi, que preferiu “esquecer esse pequeno detalhe” para ser, hoje, quem todos sabemos que é), e de um comerciante argentino chamado Roberto. Roberto é um veterano da Guerra das Malvinas. Sua vida se paralisou há 20 anos por causa de um duro golpe do destino, e, desde então, ele vive recluso em sua casa, sem quase nenhum contato com o mundo, até que um estranho evento o desperta e o traz de volta à vida.
Esta comédia, vejam só, é a história do encontro de Roberto e do rapaz chinês chamado Jun, o mesmo do encontrão com a vaca de 30 arrobas e que está perdido na cidade de Buenos Aires em busca do único familiar que tem vivo, um tio que emigrou para Argentina. Roberto, no filme, transpira a todo momento a maior tristeza e frustração que o povo argentino já viveu nos últimos séculos: a derrota sangrenta da disputa das Malvinas, na verdade Falklands, com o Reino Unido. Na Argentina esse assunto é um tabu caríssimo e silencioso, meio que dodói, que custou a vida de quase mil argentinos, num conflito relâmpago onde, em uma só batalha, 200 jovens entre 18 e 24 anos foram degolados à noite por um destacamento inglês especializado em invadir silenciosamente as trincheiras e matar, da mesma form,a com punhais cobertos de terror. Amanheceram mortos sem que ninguém os tenha visto agir.
O filme meio que mostra esse efeito nas tristes palavras de Roberto. Roberto e Jun se encontram no momento em que Jun é jogado na rua do interior de um táxi, depois de ter sido assaltado pelo motorista. Jun cai junto aos pés de Roberto. A partir deste momento, começa uma forçada e estranha convivência entre ambos, pois Roberto não fala chinês, e Jun não fala espanhol. Roberto tenta deixar Jun em uma delegacia e depois na embaixada da China, mas ninguém quer recebê-lo. Decide levá-lo para sua casa, pois não tem coragem de deixá-lo abandonado na rua como um cachorro. Afinal de contas, para os chineses, cachorro não é coisa que se jogue fora.
Ricardo Darín, o premiado ator argentino que viveu um tempo no Brasil entre as suspeitas ruas do Lido, em Copacabana, foi entrevistado via videoconferência pelo apresentador Pedro Bial. De forma elegantíssima e fina, respondeu a todas as perguntas do entrevistador, que parecia tentar encurralá-lo na direção de criticar o Brasil, colocando argumentos pueris tais como a rivalidade entre os dois povos, além do futebol. Mas, da conversa entre Ricardo e Bial, restou sempre a constatação de que existem pessoas que estão acima de qualquer suspeita, e outras sobre as quais não resta a menor dúvida. Basta prestar atenção nos convidados do programa, com raríssimas e honrosas exceções. O filme deve ser visto, assim como muitos outros estrelados por Ricardo Darín, com destaque para “Relatos Selvagens”, um dos seus mais brilhantes e conhecidos trabalhos. 
 
Maestro Ethmar Filho – Mestre em Cognição e Linguagem.

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