Arthur Soffiati - Semana polêmica
* Arthur Soffiati - Atualizado em 22/02/2022 13:58
Se a Semana de Arte Moderna causou polêmica pouco depois de ocorrida, continua causando ainda hoje. Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, um grupo de jovens escritores, pintores, escultores, arquitetos e compositores reuniu-se no Teatro Municipal de São Paulo para apresentar trabalhos que contestavam a cultura então dominante, ainda parnasiana e simbolista. Não há dúvidas quanto à influencia europeia sofrida por esses jovens, mas eles buscavam formas brasileiras de expressão. Eles ainda não entendiam muito bem o que desejavam, mas sabiam o que não desejavam. Entre os jovens, só havia um veterano, Graça Aranha, conhecido pelo romance “Canaã”. Graça era membro da Academia Brasileira de Letras e pretendia a liderança entre os jovens. Não conseguiu.
Houve antecedentes. Em 1913, o pintor Lasar Segall veio ao Brasil, onde residia uma irmã sua, e expôs seus quadros já expressionistas em São Paulo e em Campinas. Não causou nenhum escândalo num país em que, no máximo, se admitia o impressionismo. Nem para polêmicas havia clima em São Paulo. A exposição que causou barulho foi a de Anita Malfatti, em 1917, graças a um artigo de Monteiro Lobato, considerando a artista uma mistificadora. Os jovens que promoveriam a Semana de Arte Moderna a defenderam.
Os três dias da Semana foram marcados por muito barulho e muitas vaias. Soube-se depois que foi tudo combinado. Na verdade, o evento não causou a celeuma propalada. Mereceu algumas notas nos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Carlos Drummond de Andrade escreveu mais tarde que, em Minas Gerais, não se tomou conhecimento da Semana. São Paulo era uma cidade que estava se modernizando. No campo, ainda dominava a economia cafeeira, que gerou uma poderosa aristocracia rural. Na capital, a industrialização caminhava a passos largos, com grande movimento de imigrantes italianos, alemães e japoneses, principalmente. Esses imigrantes ou assumiam a condição de ricos burgueses ou de operários urbanos. No caso dos japoneses, muitos foram para o campo. A Semana foi bancada pela aristocracia rural, sobretudo por aqueles representantes seus que viviam apenas das rendas auferidas com o café, vivendo na cidade e promovendo encontros periódicos de jovens intelectuais em seus Salões, a exemplo de Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado. Na famosa conferência “O movimento modernista”, proferida em 1942, Mário de Andrade reconheceu o apoio da aristocracia cafeeira para a promoção da Semana, sem que isso possa ser apontado como algum segredo silenciado pelos modernistas de São Paulo. Na mesma conferência, Mário esclareceu que a burguesia dos imigrantes e carioca não se interessava por cultura.
Já no Rio de Janeiro, o contexto era outro. A cidade era a capital da República. Muitas pessoas com aspirações intelectuais deixavam sua província natal para morar no grande e fervilhante centro cultural do país. Intensas eram as influências do exterior. Como mostrou Ruy Castro, o Rio de Janeiro era moderno. Devemos distinguir moderno de modernismo. Moderno provém de modernidade, movimento de atualização cultural nascido no século XVIII na Europa, talvez até antes. Pode-se dizer que o Brasil é um moderno meio retardado desde fins do século XVIII. Já modernismo é um movimento de atualização dentro da modernidade. No Rio de Janeiro, e isso Ruy Castro não fala, a modernidade não permitia que os autores modernistas se destacassem devidamente. Estava tudo junto e misturado no Rio: parnasianos, simbolistas, pré-modernistas e modernistas. Ombreavam lado a lado Olavo Bilac, Hermes Fontes, Gilka Machado, Júlia Lopes de Almeida, João do Rio, Lima Barreto, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Alvaro Moreyra, Villa-Lobos etc. Não era impossível um evento como a Semana de Arte Moderna no Rio de Janeiro, mas bastante improvável.
Havia uma ligação entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1921, Mário de Andrade integrou uma comitiva que foi ao Rio de Janeiro para ler os poemas de “Pauliceia desvairada”, o primeiro livro com versos livres da literatura brasileira. Ele inaugurava o modernismo. Seria publicado em 1922, logo depois da Semana. Durante o evento em São Paulo, os cariocas Ronald de Carvalho e Villa-Lobos participaram dele. Manuel Bandeira enviou um poema seu para ser lido. Os paulistas alimentavam certa rivalidade com o Rio de Janeiro, principalmente Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, que desejavam o Brasil curvado aos pés de São Paulo. Mário teve esse desejo durante muito pouco tempo. Logo em seguida, passou a se considerar brasileiro. Portanto, um olhar em retrospectiva mostra mais proximidade entre Rio e São Paulo que rivalidade. São Paulo parecia um rincão do Rio menos contaminado por informações modernas e onde seria possível ter mais clareza do modernismo.
Cem anos depois da Semana, está havendo também uma rivalidade de outros estados com São Paulo, como aconteceu com a oposição Mário x Oswald, tão prejudicial à pesquisa e à compreensão do modernismo no Brasil. Estudiosos regionalistas descobrem autores que teriam produzido obras modernistas antes da Semana ou ao largo dela no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Minas Gerais, na Bahia, no Pará...
Ou bem ou mal, só havia duas cidades com condições de renovar a cultura: Rio de Janeiro e São Paulo. Como já vimos, o Rio padecia de excesso de informação moderna, tendo dificuldade de separar o modernismo do moderno. São Paulo reunia essas condições. Luis Augusto Fischer está defendendo que o Rio Grande do Sul chegou primeiro por conta de poetas cujos livros nem chegaram a ser publicados, sem desdouro nenhum para eles. Suas vozes não foram ouvidas em 1922, portanto não contam. O Pará também estava distante de encabeçar um movimento de modernização da cultura brasileira e regional. Em Minas Gerais, havia uma inquietação modernizadora que só ganhou rumo com a visita de modernistas às cidades históricas em 1924. A maior manifestação semelhante ao modernismo foi a exposição de Zina Aita em 1920, em Belo Horizonte. Ela faria depois uma exposição no Rio de Janeiro e exporia trabalhos seus na Semana. Em Pernambuco, certa inquietação renovadora também já existia. Basta considerar as exposições de pinturas modernistas do pernambucano Vicente do Rego Monteiro no ano de 1920 em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas, um movimento sistemático só nasceu em 1924, com o manifesto de Joaquim Inojosa depois de contato com modernistas paulistas em 1921. No Pará, artistas ouviam ecos do exterior, do Rio e de São Paulo, mas não chegaram a constituir um movimento forte de renovação.
Assim, em vez de buscar pioneirismos, os pesquisadores devem buscar autores e movimentos em outros estados. A cultura brasileira precisa mapear melhor a renovação modernista no Brasil. Em Campos dos Goytacazes, jovens intelectuais se reuniram em torno da revista “Horizonte 22” e promoveram um movimento de modernização reconhecendo a contribuição de São Paulo.
Os modernistas acompanhavam atentamente o que acontecia na Europa em termos culturais, mas empreenderam um projeto de descoberta do Brasil. O “Manifesto Antropófago” enfatizou o processo de aculturação de influências europeias. Não se tratava de repudiar essa influência, mas de adaptá-la à realidade brasileira. Mário de Andrade empreendeu um trabalho hercúleo nesse sentido com ênfase em “Macunaíma”, livro publicado em 1928 que se constrói a partir de estudos que ele empreendeu sobre as mitologias indígenas do Brasil e mesmo das fronteiras com outros países sul-americanos. Não se trata mais de escrever uma obra surrealista a partir das contribuições de Freud, mas de se voltar para a contribuição dos povos indígenas. Foi também grande o trabalho de pesquisa em linguística para demonstrar que o português falado no Brasil não era mais o português de Portugal. Tratava-se de dar um passo adiante: escrever em português do Brasil. Essa conquista chegou aos nossos dias. Não foi apenas um traço de época. Hoje, os escritores brasileiros usam o português, mas escrevem diferentemente de Portugal. Essa talvez seja a maior contribuição dos modernistas, mesmo para aqueles que nada sabem do modernismo ou que o repudiam.
Mas os modernistas tiveram de lidar com o regionalismo. O Brasil não apenas falava um português diferente do de Portugal. Havia regionalizações do português na Amazônia, no Nordeste, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Sul e até mesmo em regiões menores, como Campos dos Goytacazes, por exemplo. Num primeiro momento, Mário de Andrade entendeu que os regionalismos deviam recuar diante da construção do Brasil enquanto um Portugal na América do Sul, cuja língua se enriquecia e se modificava com a contribuição das línguas nativas, sobretudo o tupi, e africanas. Na década de 1930, os regionalismos passam a ser aceitos não talvez em formas distintas de grafia, mas de vocábulos locais.
A maioria dos analistas do modernismo oriundo da Semana de Arte Moderna tende a fixar o seu fim no movimento tropicalista da música popular. Na já mencionada conferência “O movimento modernista”, de 1942, Mário de Andrade apontava três conquistas do modernismo para os intelectuais e artistas brasileiros: o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. São princípios válidos até para aqueles que repudiam o movimento modernista. Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto são beneficiários da Semana, por mais que a rejeitem. Todos os escritores, pintores e músicos da atualidade que desenvolveram linguagem ainda motivada por temas brasileiros são devedores da Semana. Consideremos que, mesmo aqueles artistas que se inserem num contexto globalizado a partir do Brasil, não escrevem num português de Portugal.
No contexto da Semana e do modernismo, cabe destacar a figura de Mário de Andrade. Oriundo da classe média, sem curso superior, sem renda de pai rico, Mário investiu seu salário de professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo na aquisição de livros, discos, obras de arte e no estudo de alemão. Seus companheiros viviam na Europa. Sem recursos para viagens e com medo de viajar, ele importava livros e revistas europeias, que devorava com avidez. Ele financiou seus primeiros livros por não encontrar editoras interessada em publicá-los. Ele trabalhava como articulista para complementar sua renda. Além disso, Mário se organizou mental e materialmente. Difícil encontrar um estudioso com sua curiosidade, capacidade de trabalho (a despeito de suas doenças) e organização. Inteligência, cultura e organização podem ser apontados como os três atributos principais de Mário. É impossível hoje empreender uma pesquisa sobre o modernismo entre 1922 e 1945 (quando Mário morreu com apenas 51 anos) sem consultar o acervo do intelectual paulista, hoje no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Inútil o esforço para restringir Mário a São Paulo. “Macunaíma”, “O turista aprendiz” e toda sua crítica de literatura, de artes plásticas e de música mostram como ele estava atento a tudo o que acontecia no Brasil. Sua gigantesca correspondência mostra as redes de relação que manteve em todo o país, saindo dele, inclusive, e entrando na Argentina, no Chile e na França. Esse mapeamento ainda não foi feito a partir das mais de 7 mil cartas que ele conservou de seus correspondentes. Esses, por sua vez, não tiveram o mesmo cuidado, com algumas exceções. Além do mais, Mário não foi apenas um documentalista. Ele escreveu poesia, contos, romances, crítica e estudos de literatura, de artes plásticas, de música, de folclore, de patrimônio cultural. Foi diretor do primeiro departamento de cultura do Brasil, que funcionou como um verdadeiro ministério da cultura. Foi o formulador do projeto para a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Além de artista, foi um grande incentivador e organizador da cultura brasileira. Além do mais, “Macunaíma” é uma das grande obras de literatura brasileira, hoje reconhecido com a matriz do realismo fantástico da América Latina e da África.

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