O papel das pesquisas eleitorais na democracia
- Atualizado em 03/12/2020 16:23
Precisamos discutir o papel das pesquisas eleitorais na democracia. O questionamento das sondagens é costumeiro e esperado por parte de quem se vê em desvantagem e compõe também o cardápio de quem pretende desestabilizar o processo democrático. No pacote “antisistema” da extrema-direita, por exemplo, é típico negar a pesquisa, desqualificar a imprensa e duvidar da lisura do procedimento eleitoral. Mas isso não invalidada todos os questionamentos que se fazem. Ao contrário, é preciso levar a sério a desconfiança com as pesquisas eleitorais, pois esta desconfiança tem significado para o processo democrático. Essa desconfiança não é uma característica exclusiva da extrema-direita e sua difusão representa um problema adicional para a democracia.
Ao observar as eleições de 2020 em diferentes municípios, é impossível não se impressionar com a falta de efetividade da regulação jurídica sobre a produção e divulgação de pesquisas de intenção de voto. A regulação jurídica da pesquisa eleitoral está vinculada a seu papel na construção da opinião pública e na orientação do voto. Pesquisa eleitoral não é mero instrumento de informação ao livre dispor de seus interessados, realizadores e divulgadores. Elas podem se transformar em recursos de poder nas mãos de quem disputa ou deseja influenciar eleições. Em municípios pequenos, como os do noroeste fluminense, a falsificação e a divulgação clandestina de pesquisas (sobretudo via Whatsappp) acontece sem cerimônia e ajuda a alimentar o já rico e intenso fluxo de notícais falsas capazes de influenciar a decisão dos eleitores. Em municípios maiores, como Campos dos Goytacazes, a divulgação clandestina não é eficaz, mas a manipulação de resultados na origem (a relação entre contratante e contratado) continua sendo possível e utilizada como recurso eleitoral.
À medida que a regulação jurídica não é efetiva, as pesquisas vão sendo crescentemente percebidas como instrumentos para influenciar o voto, e não apenas pelos negacionistas de plantão. E ainda que esta percepção possa ser exagerada, não há como negar que o contraste entre o resultado das urnas e as pesquisas de véspera alimentam, com evidências críveis, questionamentos legítimos e incontornáveis. A democracia depende não apenas de procedimentos formais como as eleições, mas também de práticas e expectativas informais construídas na opinião pública, especialmente porque estas práticas e expectativas podem influenciar a dimensão formal do sistema democrático. Ao escapar ou subverter a regulação jurídica, a atividade de pesquisa eleitoral pode exercer influência ilegítima e decisiva sobre o comportamento de eleitor e comprometer a democracia. Este me parece ser o caso quando pesquisas eleitorais, divulgadas há poucos dias das eleições, declaram a disputa encerrada, estimulando a desmobilização na campanha dos supostos perdedores antecipados e contribuindo para agravar o problema da abstenção eleitoral e consequentemente a crise de representação da democracia.
A disputa do segundo turno em Campos dos Goytacazes é um exemplo. Pesquisa do Ibope, divulgada na quarta-feira antes do pleito, apontava uma vitória de Wladimir sobre Caio por 57% a 43% dos votos válidos. O resultado das urnas foi de 52,4% para Wladimir contra 47,6% para Caio. Por mais que a diferença possa ser justificada pela margem de erro, a divulgação dos resultados da sondagem como “vótos válidos” pode ter criado ou alimentado um falso cenário de jogo encerrado capaz de ter efeito desmobilizador sobre parte dos eleitores que pretendia votar em Caio. Pode-se alegar que os erros das pesquisas eleitorais têm a mesma natureza das incertezas de qualquer pesquisa científica. De fato, não cabe a nenhuma norma ou decisão jurídica obrigar a produção de certezas cientificamente inviáveis. Mas é um equívoco tratar os erros das pesquisas eleitorais como sendo da mesma natureza daqueles que podem ser cometidos pela pesquisa cientíica em sua esfera própria de atividade. Em seus efeitos, a pesquisa eleitoral não opera no domínio da ciência, mas sim no da política. Incertezas científicas na ciência produzem questionamentos científicos e mais pesquisa científica para enfrentá-los. Na política, mesmo que as pesquisas sejam honestas, elas podem influenciar o resultado eleitoral e corromper a soberania popular. Mesmo que não possamos contar com estudos conclusivos sobre esta possível influência, sua mera possibilidade já é motivo suficiente para discutir o papel e a regulação da divulgação das songagens no processo democrático e eleitoral. A erosão das crenças que sustentam a adesão ao procedimento eleitoral e à democracia é incremental, embora as vezes dê saltos. Não são apenas as notícias falsas e os ataques explícitos ao processo eleitoral que alimentam esta erosão. Vários fatores contribuem. Entre eles a desconfiança de que instrumentos de informação e pesquisa podem estar a serviço das partes envolvidas na competição eleitoral. A efetividade da regulação jurídica das pesquisas não deve buscar combater apenas a produção e divulgação ilegal de pesquisas. Deve garantir também uma clima de confiança na opinião pública sobre o papel destas pesquisas na democracia. A legalidade precisa ser efetiva também para garantir a legitimidade das pesquias, ou seja, a crença compartilhada por eleitores e candidatos de que elas não servem de recurso ilegitimo de poder nas mãos de uns e outros. Como propõe o jurista Eriko Ferrari Nogueira, em artigo públicado na Revista da Faculdade de Direito da UFMG, “é conveniente que a comunidade jurídica repense a divulgação irrestrita de pesquisas eleitorais sob o manto do direito à informação e à liberdade de expressão, mormente em véspera eleitoral. Tal fundamentação também pode, de outro modo, subsidiar o aperfeiçoamento do processo eleitoral, para que se restrinja as pesquisas eleitorais” (NOGUEIRA, 2012, p. 116).
Referências:
NOGUEIRA, Érico Ferrari. As PESQUISAS ELEITORAIS COMO CONDICIONANTES DO JOGO DEMOCRÁTICO. REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG, [S.l.], n. 60, p. 95-120, jul. 2012. ISSN 1984-1841.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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    Roberto Dutra

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