Sérgio Arruda de Moura: A serventia das orelhas
Sérgio Arruda de Moura - Atualizado em 05/10/2020 14:11
Ando pelas ruas imaginando o resto da cara das pessoas, todas trajando uma máscara, a máscara protetora não de identidades, mas de vírus invasores, vindos daqui mesmo — e a história dirá se veio da China ou não. É que a gripe espanhola de há cem anos não era espanhola. Vejam só! Veio da América, no sangue e nas vias respiratórias de soldados combatentes da Primeira Guerra mundial, desembarcados logo na Espanha.
Voltando à cena urbana de hoje. Os olhos dos brasileiros são lindos. O problema é quando descem a máscara e o resto do conjunto é denunciado! Ouvi isso de não sei quem. Passei a observar. O melhor da identidade das pessoas é ir se mostrando aos poucos, pra gente ir se acostumando, ouvi de outra.
Não sei o que dizer. Leitor de gibis, revistas em quadrinhos, incluindo aquelas que no passado se dirigiam a adultos, como as de histórias de faroeste, me perguntava: “Como é que o os bandidos esperam não ser identificados depois do assalto? É que eles usavam um lenço amarrado cobrindo exatamente essa parte que as máscaras de hoje cobrem: o nariz, a boca e o queixo. Os olhos, que são janelas da alma, ficavam de fora. Será porque os bandidos do passado não tinham alma?
O Zorro também, só que ele fazia o contrário, cobria os olhos. Nem isso! Cobria só o entorno, as sobrancelhas, os pés-de-galinhas. O Zorro, que tinha alma, já que combatia o mal, podia deixar a boca, que só dizia verdades, de fora. O Zorro, dá pra saber quem é o Dom Diego de La Veja, só pelo bigodinho. Embora pouco dissesse e mais agisse, contrariamente a Hamlet, que mais falava do que fazia, o Zorro e o seu fiel ajudante mudo, cujo nome agora me foge, faziam justiça com as próprias mãos, pelas vias do bem, diferentemente da PF de hoje em dia, que acoberta bandidos.
Voltando às máscaras de hoje em dia. Elas deram mais uma função às orelhas: segurá-las. Vi gente com orelhas gigantes, porque alguns elásticos repuxam muitas elas para frente. É preciso escolher os modelos e costuras mais apropriados para que isso não ocorra. Ganhei umas de crochê. Os imensos portais por onde passariam não só vírus, como mosquitos, são barrados com pedaços de filtro Melissa. Mas ainda não experimentei.
As orelhas são adereços da fisionomia humana. Pequenas, grandes, de abano, orelhas só servem para dar harmonia às laterais do rosto. Outra função sua é servir de material para bullyings, embora outras partes do corpo sirvam melhor a esse propósito.
Pensando nas orelhas isoladamente nos perguntamos: elas não nos deixam com uma aparência um tanto quanto primitiva na escala da evolução? Sempre que vejo alguns pares de orelhas me lembro de Yoda, Toppo-Giggio, Dumbo, Pink e Cérebro — personagens da cultura de massa que deram dignidade às orelhas, porque eram providos de inteligência, ou pelo menos de humor.
No Nordeste, se diz que orelhas grandes são sinal de longevidade, ou então que as orelhas vão crescendo com a idade.
Há orelhas de todas as dimensões, e ganham graciosidade com as joias que elas podem ostentar. Os descendentes dos punks, acho eu, desenvolvem um buraco no lóbulo, que eles vão alargando com um dispositivo, até chegarem à largura de passar um dedo, objetivando darem dignidades extraevolutivas a elas: vejam, esse é o meu corpo e ele me pertence.
Os bebês-meninas ganham logo um brinquinho. As mulheres vão fazendo coleções deles, de todos os tamanhos e etnias, incluindo uns imensos de argola, não recomendados para correr na caatinga.
Os homens, só a partir de há cerca de quarenta anos, foram se adequando, e trocaram de brincos para piercings, que se alastraram para outras regiões do corpo, inclusive lá...
As orelhas, que deixaram de escutar, agora seguram máscaras. Acho digno, que é para nos mantermos vivos, e elas voltarem a ser portais dos ouvidos para depois da pandemia.
As orelhas serviram de modelo para a invenção do radar — acho que só! As antenas parabólicas também, é verdade, como grandes escutas do que vem dos céus. As principais mensagens continuam sendo as que vêm da Terra.
As orelhas, de personagens da boca de cena da escuta, ocupadas, portanto, em segurar elásticos, taparam um pouco os ouvidos, e não estamos ouvindo o que se anuncia.
Na verdade, uma pessoa sem orelhas continuaria ouvindo, pois não? Então, sendo assim, e sem função sequer estética, as orelhas que ganhem mais esta utilidade. Contanto que os ouvidos continuem ouvindo.

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