Sérgio Arruda de Moura: Ficções da quarentena e da amizade
Sérgio Arruda de Moura - Atualizado em 28/09/2020 21:07
A peste já caminhava solta sem saber que já era uma pandemia em 1348, com fim marcado para daí a cinco anos, quando o tédio invadiu os corações de tão nobres criaturas, 10 ao todo, sendo três varões e sete donzelas. Sem demora arquitetaram um plano para dar uma volta naquela madorna improdutiva. Já não trabalhavam e ainda tinham de ficar sem fazer nada? Foi aí que tiveram a ideia de se encerrarem em uma vila isolada e concluir a estada com uma maratona de histórias a ser cumprida em dez dias! A ideia fora de Giovanni, querendo com isso modernizar a literatura, que já estava caducando de religiosices e latinices. Afinal de contas, Florença merecia.
Toca para o século XXI, ano de 2020. Em algum lugar do ciberespaço mediado por um aplicativo, alguns amigos, sentindo falta do aconchego, fundaram um grupo de WhatsApp sem imaginar que estavam fundando uma espécie de Sociedade do Betume, para garantir e regar o chão da literatura além dos limites da rua Paulo, que fosse além de Campos dos Goytacazes, para o mundo e para a glória. Afinal de contas, Campos merece.
O resultado foi uma espécie de Mafuá do Malungo, mas coletivo, em que não só o Bandeira escreveria para revisitar os amigos em poemas curtos, rimados, medidos, cheios de amizade e admiração por gente como Drummond, Murilo Mendes, Vinícius, Rosa, até Juiz de Fora, além de Verlaine, Keats e ele próprio. Bandeira também havia vivido a experiência de se isolar (não junto com o mundo todo). Foi quando ruminou sua poesia, esperando a morte de uma pandemia só dele, morte que chegou atrasadíssima para o tuberculoso recluso em eterno compasso de espera da indesejada das gentes até a provecta idade de oitenta e poucos anos, com ele fazendo cinza das horas.
As biografias de escritores estão repletas de causos de grandes nomes que só produzem isolados. Os americanos procuram cabanas na floresta; franceses, castelos; Sartre, o Café de Flore; Clarice, os guardanapos e o verso dos talões de cheque. Um grupo de campistas, mas não apenas, procurou os aplicativos, que são formas atualizadas, com sucesso, de isolamento, e acabaram num e-book, cujo título, "Revelações da Quarentena: Uma brincadeira literária coletivo com textos da pandemia", encontra-se agora disponível na rede.
Esses poetas-escritores, jornalistas, professores, artistas da cena e fotógrafos queriam (e querem) da amizade mais do que ela pode dar, a entrelinha do que não se disse ou se supôs não ter dito, ou não se pôde dizer a toa, ou que foi esquecido de dizer, ou que foi dito e agora se repete, e que só pode ser feito com a ajuda luxuosa da ficção, acumpliciada.
Foi aí que Adriano Moura ressuscitou duas personagens do teatro para dizer a Adriana Medeiros que ela prega peças — e que é só chamá-la que ela sobe no palco. Ela por sua vez contou horrores da intimidade e solidão dele na Quarentena — a sorte é que tudo era ficção. Carlos Alencar, por sua vez, ressuscita Hamlet, Horácio e Wladimir Herzog e constrói uma cena em que Vitor Menezes entra como seu legítimo herdeiro.
Na vida prática, não há nada que se pareça mais com a ficção do que a própria vida prática, mas essa não vale. Então vou ficar com o sonho que Vitor Menezes teve e que é recontado por João Paulo Arruda, o campeão, dentre eles, da narrativa fantástica, incluindo suas frases, que derrubariam a teoria gerativista de Noam Chomsky.
As referências são inúmeras, sinal de que a literatura é uma gramática semântica, sendo um escritor, um poeta e um romance espécies de semantemas com os quais se fazem outros textos, provando que um escritor se faz sempre deglutindo outro. Todos os 24 autores (ou quase), de alguma forma, disseram nos seus contos quem é que estava comendo — simbolicamente, peraí.
Enfim, tudo era apenas uma brincadeira... e terminou assim mesmo, como resultado de uma brincadeira, mas uma brincadeira literária. Literatura é isso mesmo, um campo tão vasto que pode muito bem incorporar mais esse item: brincadeira.
Os 46 contos desorganizados foram, enfim, organizados por Wellington Cordeiro e Jorge Rocha, com projeto gráfico, ficha catalográfica e o escambau, posfácio, prefácio, de gente que, se já não eram amigos, tornaram-se, não necessariamente de infância, mas de faculdade, de boteco, de batente de trabalho, ou de Quarentena, em cenários campistas. Fiquei achando que o correlato em Campos do La Rotonde e do Café de Flore em Paris é Ao Gato Preto, bar-cenário. E o Aurélio e o Houaiss devem estar disputando já os verbetes da Cabruncopédia, com neologismos que estavam fazendo falta na língua portuguesa e que vêm no Revelações como bônus.
Estão de parabéns, além dos já citados, Alexandro Florentino, Alfredo Soares, Álvaro Marcos, Carlos Augusto Souto de Alencar, Cássio Peixoto, Cristiano Pluhar, Elda Moura, Felipe Sales, Gustavo Soffiati, Lionel Mota, Marcelle Louback, Márcio de Aquino, Maurício Xexéo, Marlúcio Arruda, Rodrigo Florêncio, Ronaldo Junior, Wesley Barbosa Machado e Zé Henrique Meireles. A eles toda a minha devoção por firmarem pé na cena cultural em tempos de penúria.

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