Sérgio Arruda de Moura: Cultura Netflix
Sérgio Arruda de Moura 28/08/2020 16:20 - Atualizado em 28/08/2020 16:26
Sempre que uma tecnologia nova aparece e se instala, as relações centradas nos hábitos culturais e sociais tendem a se reconfigurar. Foi assim com a invenção da prensa há cerca de 500 anos, com os meios de comunicação de massa ao longo do século XX, entre os quais o cinema e a televisão, e com as tecnologias digitais bem mais recentemente. Os próprios meios se reinventam à medida que as tecnologias vão se aprimorando e suas demandas vão sendo materializadas.
Os que têm mais de 40 anos de idade lembram bem da televisão em preto e branco e depois a colorida, daquela com tela plana, de plasma, LCD, led. Acompanharam esta evolução os dispositivos acessórios, primeiro o videocassete e o CD player, o pacote pago a cabo, e agora o aparelho que invade todos os domínios da internet, a chamada smart TV. Como toda tecnologia nova, a smart TV já venceu seus obstáculos iniciais com muita facilidade, e hoje é um dos maiores objetos de desejo de todas as classes.
Porém, a cultura fílmica pouco avançou na exploração do cinema no quesito diversidade cultural e étnica.
Hoje, com a televisão associada à internet, pode-se avançar um pouco mais neste quesito. Um dos componentes responsáveis por isso é o canal Netflix, com seu acervo de filmes e séries. Com produções próprias, o acervo já conta com mais de 4 mil títulos, entre filmes e seriados, pequeno ainda. Mas, o seu maior trunfo, a meu ver, é o fato de ter dado uma espécie de basta ao poderio exclusivo de Hollywood. Embora a Netflix seja uma empresa sediada na Califórnia, seu projeto consiste na difusão generalizada de filmes por streaming, sendo diferenciais a vez e a voz que estão sendo dadas à diversidade da indústria fílmica.
Com a Netflix, pra falar de minha experiência, temos hoje acesso a filmes de diversas culturas, o que, sinceramente, é algo impossível tanto na TV aberta quanto na paga, ou mesmo no circuito de cinema. Tornei-me fã incondicional de filmes indianos, por exemplo, tanto os produzidos dentro quanto fora da Netflix, mas que são veiculados pelo canal.
Minha surpresa sobre a qualidade dessa indústria é um sintoma do condicionamento que a máquina de Hollywood exerce sobre nós, com seu eficiente sistema de publicidade, distribuição, produtos atrelados e endeusamento de seus astros e estrelas, além do falido projeto do “american way of life”. O negócio agora é também aquele que vem da Bollywood, a máquina poderosa de fazer filmes da Índia, o país que a cada três meses vende tantos ingressos de cinema quanto a sua numerosa população de mais de 1 bilhão de habitantes. Sua produção anual é de mais de mil filmes, e o custo do ingresso é mais que acessível.
Nos últimos 15 dias, assisti a cerca de uma dúzia deles. Meu interesse é crescente e, com esses números, terei o que assistir até o fim da vida. A temática é variada, e se enganam os que acham que são filmes inocentes ou alienados da dura realidade vivida em um país com problemas comuns aos nossos, entre os quais a pobreza endêmica, a corrupção e a diversidade cultural espraiada em território continental.
Há épicos históricos e filmes de costume e comportamento para todos os gostos. Destaco “Laagan, a coragem de um povo” (2001), sobre o desprezo cultural que os britânicos colonialistas dispensavam ao povo indiano de todas as castas e classes. O filme narra uma inacreditável partida de críquete, esporte clássico bretão, desafiada aos aldeões por um chefe militar inglês arrogante, objetivando com isso humilhá-los, não bastasse o tormento dos impostos cobrados em grãos em um período de estiagem. Outro é “Da cor do açafrão” (2006), metafilme (ou seja, um filme que narra a produção de outro) sobre um episódio histórico de enforcamento de cinco jovens revolucionários que iniciavam, com a estratégia da guerrilha, uma reação contra o domínio colonial inglês na Índia na década de 1920.
A crítica ao terrível sistema de castas religiosas que domina a cena cultural-religiosa com reverberações políticas não fica de fora. “Artigo 15” (2019) trata de uma investigação policial sobre o assassinato de duas adolescentes que, por serem de casta inferior, não seria levada adiante. “Rustom” (2016) é um drama histórico (caso verídico) de corrupção nos altos escalões da Marinha indiana, misturando também componentes passionais e de fidelidade real à pátria.
Aprende-se muito com o filme indiano. Em “Romeo. Akbar. Walter”, temos um drama de espionagem emoldurado pela divergência política da Índia com o Paquistão, em episódio que gerou o surgimento de Bangladesh como país independente, no início dos anos 1970.
Música, festa, amizade e camaradagem podem ser vistos em “Queen” (2019), sobre a evolução da independência feminista de uma jovem que teve seu noivado desfeito na véspera do casamento, pelo próprio noivo, além do musicalíssimo “Três amigos na estrada” (2011), sobre os fortes laços de amizades entre três rapazes em viagem de despedida de solteiro de um deles pela Espanha. Êxtase total movido por uma produção espetacular.
Em todos os filmes, uma trilha sonora exclusiva, que embala as cenas e segmenta o filme com coreografias executadas com muito brilho, graça e colorido por homens e mulheres. Astros e estrelas completos são aqueles que interpretam, dançam, cantam e com o qual o público simpatiza. Me parece ser o caso dos artistas indianos. Nem nos damos conta de que esses filmes se estendem por mais de duas horas de exibição, alguns deles, três.
Como se vê, Bollywood ajuda a Índia, embalado pela cultura Netflix, o que eu não percebo no cinema brasileiro, infectado de comédias estúpidas e filmes chapas-branca sobre notoriedades, com custo proibitivo de ingressos que em nada ajudam numa reflexão crítica sobre a nossa triste realidade.

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